Ronaldo, criancinhas e publicidade

O que me choca neste anúncio é a utilização da figura sem-abrigo para promover um produto comercial

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O recente vídeo feito por uma marca de headphones e no qual Cristiano Ronaldo é protagonista, fintando numa praça em Madrid disfarçado de sem-abrigo, mostra até que ponto o despudor publicitário parece não conhecer limites. O “making of” mostra o português a ser maquilhado, com barba, bigode, uns enchimentos para parecer mais gordo e um fato de treino. Chegado à tal praça, fazendo-se acompanhar por um cão, coloca uns pertences num banco e vai depois driblando chão fora, sem receber grande atenção por parte de quem passa. Enfim, o desfecho esperado: Ronaldo revela a sua identidade em frente a uma criança com quem tinha dado uns toques, assina a bola e gera um enorme “bruá” nos transeuntes.

O que me choca neste anúncio é a utilização da figura sem-abrigo para promover um produto comercial. Não se trata aqui de falsos pudores, nem de me aproveitar da fama do Ronaldo versus a má condição dos desafortunados que vivem do que lhes dá a rua, para então poder escrever uma crónica em bicos de pés. Não é nada disso. Trata-se, isso sim, de me indignar contra a banalização das formas de vida que sobrevivem com bem menos do que a dignidade humana devia permitir. Falo, por exemplo, de pessoas com as quais nos cruzamos todos os dias e que muitas vezes têm dificuldade em conseguir uma refeição quente.

Na publicidade, como na vida, não pode valer tudo.

Indignação foi também o que motivou a Associação Portuguesa de Direito de Consumo (APDC) a apresentar cinco queixas contra empresas, por estas utilizarem crianças para promoverem produtos que não lhes dizem directamente respeito, como determina o Código da Publicidade. Vodafone, Skip, Fairy, Seat e Calvé estão na mira da APDC, que pede a suspensão imediata dos referidos anúncios.

Como muito bem refere a notícia do PÚBLICO, o número 2 do artigo 14.º é explícito: “Os menores só podem ser intervenientes principais nas mensagens publicitárias em que se verifique existir uma relação directa entre eles e o produto ou serviço veiculado”. Não são os casos.

Claro que isto não “incendeia as redes sociais”, não motiva “ondas de indignação”. Talvez porque seja “giro” ver crianças ternurentas na televisão, da mesma forma que se tornam virais os vídeos com gatinhos no Facebook. O consumismo pode ser tramado e tolhe o pensamento.

Aos Ronaldos, aos telemóveis, detergentes, carros e maioneses deste mundo não pode ser permitido tudo. As campanhas publicitárias tendem naturalmente a procurar o olhar mais imaginativo e atraente face ao produto que querem vender, mas há limites que têm de ser observados, sob pena de entrarmos num território sem rei nem roque.

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