Aviso aos novos: fiem-se na Virgem e carreguem no “like”

Quando eu era muito puto não havia telemóveis, nem computadores na casa da gente, nem fotocópias a cores, nem reciclagem, nem problemas de fumar ao pé dos gaiatos

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Vladimir Fedotov/Flickr

Quando eu era muito puto contava pelos dedos para ver que idade ia ter no ano 2000, que idade ia ter quando fosse crescido e vivesse no futuro.

Quando eu era muito puto houve um dia que chegou a televisão lá a casa, um cubo folheado a madeira que dava dois canais a preto-e-branco e onde víamos o “Zé Gato”, o “Dartacão”, o “Polvo” e a miúda que dava porrada neles todos do “Duarte & Companhia”. Quando eu era muito puto tínhamos todos “kispos” parecidos e quando chovia íamos todos para a escola com as mesmas galochas de borracha encarnada. A rádio era cheia de António Sala e a televisão de Júlio Isidro, a Eurovisão era um caso sério e toda o mundo via a mesma telenovela.

Quando eu era muito puto não havia telemóveis, nem computadores na casa da gente, nem fotocópias a cores, nem reciclagem, nem problemas de fumar ao pé dos gaiatos, a farda dos móinas era cinzenta, havia uma cintura de barracas a cercar Lisboa, o vinil não era “hip” nem “cool”, a canalha brincava mais na rua, as mães que barravam os miúdos com protector solar na praia eram exóticas, o Marco Paulo era o Tony Carreira de agora, o Futre o Cristiano Ronaldo, o Herman ainda tinha garras e apetite e o Portas os dentes tortos e amarelados da bica.

Quando eu era muito puto escrevíamos cartas com envelope e selo e tudo, a fome era na Etiópia, a guerra a do Irão-Iraque e o terror o da guerra nuclear entre o Kremlin e o Pentágono. Ainda não sabíamos o que era a SIDA, não havia pizza ao domicílio, nem sushi, nem mojitos e caipiroskas, nem cintos nos bancos de trás dos carros. O Bairro Alto era cheio de punks dos antigos, o Frágil inacessível a maltinha como eu, o Gingão era mesmo a puta da confusão e com o Ary falecido, o Variações sobrava como único e solitário homossexual cá no torrão.

Quando eu era muito puto a política nacional, a santa madre igreja, o FMI, a Palestina e o Garcia Pereira já eram tal e qual o que temos hoje mas tínhamos o Zé Duarte na Comercial e ainda não tinham inventado as “playlists”; o Michael Jackson e o Carlos Cruz eram respeitáveis e a Madonna vestia as adolescentes todas. Os GNR enchiam Alvalade e o fado era reaccionário, todos os carros da Judiciária eram Fiats Mirafioris, a malta não queria fazer a PGA, só o amigo mimado é que tinha um Spectrum, não havia capacete para andar de skate, apoio psicológico para o “bullying” ou poliamorosos. Espancar a mulher ainda era mais legal e aceitável do que é hoje, ainda haviam autocarros de dois andares que desciam a Estrada da Luz, o metro acabava em Sete Rios, os filmes às vezes demoravam seis meses a cá chegar e ia-se a Badajoz para os desmanchos.

Mas no meio de toda a mudança dos últimos vinte anos há coisas que perduram e se reproduzem como que por geração espontânea: e eu dou por mim a reviver o puto imberbe que era, convencido que os pais haveriam de resolver os dramas do Telejornal e as tragédias que via na rua antes que se tornassem problemas meus, nas caras absortas pelo Facebook dos putos de hoje...

Sim, sim, diz-vos esta velha carcaça, deixem-se andar que a minha geração não tem nada mais com que se ralar do que com o vosso futuro. Nós havemos de vos resolver a dependência dos combustíveis fósseis, o aquecimento global, a tendência para a privatização da água, a planeada falência do estado social, a modificação genética da comida, a fome em África e o crónico imbróglio do Médio Oriente, a gripe comum e as carraças dos cães, estejam descansadinhos, sabem que podem confiar em nós, fiem-se na Virgem e carreguem no “like”. 

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