Da pachorra

Ainda agora deixaram as t-shirts da Violetta e já perderam o respeito às barbas brancas.

Foto
Gisella Klein / Flickr

Acordo e expulso os gatos da cama, esfrego os olhos, procuro os óculos, volto a tirá-los para lavar a cara com água gelada, esfrego-me até voltar a ter cor de vivo, espero o quente vaporoso e amargo do café, a gata procura o bater do sol, já nem cora quando mente. Janela, cigarro aceso, frio, velhas às compras, os putos da escola em frente aos saltos na aula de ginástica, notícias, tubo, mixórdia, televisão: calcitrin (na tv de manhã, à tarde e à noite, com as chamadas de valor acrescentado parece um imposto a ser velho e tosco cá na terra), a cafeína e a nicotina começam a rolar, acordo mesmo, grande porra: continuamos todos cá.

Meto música que na televisão dão coisas como o tubarão de duas cabeças, as entrevistas da Ana Sousa Dias, os Amor-Electro, o Hernâni das facadas, a parteira do CR7, o contabilista da Saúde (é mesmo competente este gajo!), os teólogos da bola (a pintelhar lances e lesões), a Ucrânia e o estrangulamento financeiro à democracia grega (toma lá Varoufakis que é para não andares a encantar as miúdas de esquerda e a moer a Angela!), valha-nos a RTP Memória que passa as Entrevistas Históricas do Herman.

Escrevo, zás catrapás tanto fez tanto faz, correio de velhos amigos: como ontem como sempre, a chamarem-me boi e coisas piores por não atender o telefone, marco logo um dia para lhes responder, lembro-me de comprar o “Borda d’Água” para saber quando é o Carnaval. Saio, olho a lista de compras: jornal, pão, hortaliças para a sopa, água tónica, "donuts" industriais, fita gomada e pasta medicinal Couto. Tenho de ir a cinco lojas diferentes, planeio o caminho mais curto que me mordem as frieiras nas mãos (esqueci-me das luvas) e me sinto velho e desidratado.

Faz anos o gaiato da minha prima, penso numa prenda (na certeza que a minha mulher já se lembrou duma coisa mais apropriada). Não há o “Borda d’Água” na papelaria nem romenos na rua a vender a falsificação fotocopiada, isto é que vai uma crise. A gordexa platinada da rua de cima cola autocolantes do PNR nos postes de iluminação, ainda lhe mando um “Ganha juízo ó ariana!” mas acho que a mentecapta nem se me apercebe por debaixo do barulho do autocarro, é preciso uma pachorra para esta terra que só visto... agora temos a raça superior a atacar na Estrada de Benfica, já não nos bastavam o Pedro e o Paulo, francamente!

O Ferreira da Fruta manda o Gil Brasileiro carregar os sacos às madames, eu ensaco as minhas próprias alfaces a fazer contas aos casamentos e separações dos amigos, a realidade é fluída e viva como uma canção boa e dorida, a exigir atenção e carinho. A música nos meus ouvidos salta para um soul muito antigo e eu abano as ancas e os sacos, as miúdas do liceu estranham um grisalho tão ligeiro mas eu não quero saber, ainda agora deixaram as t-shirts da Violetta e já perderam o respeito às barbas brancas, vão mas é ler um livro!

Volto a casa, os gatos enfiam as orelhas nos sacos todos, o Tareq ainda morde a alface, corro com ele com uma lambada bem assente e ameaço que lhe meto a cabeça debaixo da torneira, ele resmunga em cima da bancada, a mostrar-me as unhas como quem diz “Corto-te todo!”, bicho mais insolente, a gata ronrona a esfregar-se-me nas pernas, a insistir como é a única que se porta bem. Vá lá, não me chaguem que eu sou da geração rasca e cresci no ensino público... a paciência que é precisa para esta malta.

Sugerir correcção
Comentar