Há “Ordem e Progresso” em espaços abandonados

"Como é um espaço escondido, degradado, as pessoas vão lá para se drogar, para fazer sexo... e até há um menino que cria lá um cão por não o poder ter em casa", explicou o brasileiro Marlon de Azambuja ao P3

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Sara Pinheiro

Há pedaços de madeira por todo o lado, azulejos e retalhos de parede e de tecto. Numa das salas, um grupo que consome heroína e segura papel de prata não se desconcerta com a chegada de quem vem explorar. Recebem-nos com um “cuidado por onde andas, que há seringas no chão”. Era uma fábrica de produtos lácteos e foi o espaço escolhido pelo artista brasileiro Marlon de Azambuja, que, no âmbito do Festival de Arte Pública açoriano, fez por dar alguma “Ordem e Progresso” a um edifício abandonado que tem o seu próprio ambiente — que “fala” com o visitante através de tudo o que o compõe.

Quando foi convidado para a quarta edição do festival Walk&Talk, Marlon de Azambuja ficou reticente por ter prometido a si mesmo não participar mais em festivais.

Apesar disso, foi convencido e aceitou, tendo viajado de Madrid para Ponta Delgada, aproveitando a oportunidade para aprender e para criar algo diferente com a exposição “Ordem e Progresso”, um trabalho que teve lugar numa antiga fábrica de lácteos perdido nos Açores.

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“Queria conhecer o lado bom e o lado mau da cidade, mas não tinha uma ideia pré-estabelecida. A ideia foi-se criando ao conhecer a cidade por ter muitos espaços em ruínas”, explica ao P3, que acompanhou o artista. Ao visitar o velho edifício que escolheu para trabalhar, em São Roque, rapidamente se conectou pelo ambiente que o carateriza.

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“Não o escolhi pela droga, mas por ser um espaço público, o que de certa maneira fá-lo ser usado por quem quiser e da maneira que quiser. Como é escondido, degradado, as pessoas vão lá para se drogar, para fazer sexo, e até há um menino que cria lá um cão por não o poder ter em casa. O que me interessa é esse aspeto: pessoas usando um espaço como se fosse um espaço público”.

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Desorganização organizada

O trabalho de Marlon passa por dar alguma organização ao ambiente desorganizado: obrigar o espectador a ter um olhar mais atento quando repara em algum pormenor, gerando por vezes a dúvida “estava assim ou foi alguém que fez isso?”. Uma dúvida a que Marlon responde “não interessa, é bonito e deve ser visto”.

Num grande espaço aberto, há tubos caídos, onde Marlon viu um movimento que merecia ser mantido, servindo-se de um pequeno muro de pedra para devolver o movimento à fábrica. Ao lado, um jogo de pedras e placas de esponja dão ritmo ao espaço, que se completa com o telhado meio caído e com os azulejos brancos partidos — organizados e expostos de maneira a lembrar os típicos desenhos do paisagista Burle Marx.

Noutra sala, o chão de rede coberto de ferrugem sugere a fragilidade do espaço, no meio do qual Marlon prendeu uma linha que leva o olhar desde o meio a sala até à porta em frente, criando uma espécie armadilha que termina num barrote suspenso.

O lixo que cobre o chão de outro compartimento foi totalmente varrido para o lado esquerdo, deixando apenas duas pedras que já lá se encontravam. O limpar daquele espaço permitiu descobrir um axadrezado desenhado no chão pela ferrugem. No dia seguinte à sala ser limpa, alguém juntou mais umas pedras às que já se encontravam no fundo da sala, contribuindo assim para o ambiente do espaço e da exposição em si.

Qualquer um pode ser artista

De facto, algumas salas já são tão características que não foram mexidas pelo artista, como um compartimento onde é impossível ver-se o solo, coberto de madeiras, pedras e inúmeros papéis, entre os quais podem ser reconhecios antigos livros de recibos. O que carateriza tal espaço são os rolos de embalagens de pacotes de leite, amontoados a um canto, todos eles queimados, criando esculturas cilíndricas.

Noutra pequena sala, também no primeiro andar, não há paredes, nem qualquer objecto, apenas a vista para a grande sala do andar de baixo que outrora estava lotada de placas de esponja e onde Marlon ergueu uma vertiginosa torre destas placas, que fez chegar literalmente ao tecto.

O que se pretende com esta ordem na desorganização é que o espetador veja o espaço em si, não só enquanto espaço abandonado mas enquanto fábrica. Além disso, interessa também ao artista, a questão escultórica. “O pensar o que um telhado caído pode ser, o deixar empilhadas estas pedras e respeitar todo o lugar como ele já estava, com a organização natural das coisas. Isso para mim é como pensamento escultórico, parece-me muito radical e é algo muito novo no meu processo.”

A sala de chuto

Numa sala mais escura que todas as outras, onde a luz vem apenas de uma pequena janela, o espaço foi limpo, mas todos os objectos se mantiveram no mesmo sítio: os cintos, as pratas e as pedras que serviam de bancos, colocadas em círculo, sugerindo o momento de reunião e partilha. Marlon identificava-a como a sala de chuto.

“Aquilo pode ser muito forte para as pessoas. Para uma sociedade mais conservadora, a ideia de droga assusta, está muito vinculada àquela ideia de “ele está a consumir drogas, está a desperdiçar a vida”. "Por isso o espaço é uma representação quase física desta derrota, a degradação que pode acontecer.” Mas, apesar do ambiente pesado, Marlon vê a sala – e mesmo o acto – de outro modo: para ele é a ideia de reunião, numa sala em que se nota que já houve vida.

Quem visitou a exposição viu também este ambiente, associado à degradação, respondendo às espectativas de Marlon. Por iniciativa própria, as pessoas subiam e exploravam as diversas salas. Viam algumas peças e não reparavam noutras, emocionavam-se com certas coisas e comentavam o espaço em si, que se sabe ter todo protagonismo.

O local escolhido foi um espaço público real. “Se pusesse lá um guarda, ia artificializar a experiência”. Basta torcer um arame e empurrar o pesado portão de ferro.

Em vez disso, Marlon conseguiu que as pessoas dialogassem, interagissem com o espaço à sua maneira. Por conseguir ver a reacção e interpretação de diferentes pessoas, o artista pôde esclarecer que os comentários dos galeristas que lá levou foram muito diferentes dos comentários dos artistas e dos próprios organizadores do Walk&Talk. “Mas todo esse público me interessa, inclusive o pessoal que utiliza o espaço. Pensei muito neles: o que será que vão pensar, como se vão relacionar com o espaço.”

Ciente da efemeridade da sua exposição, a participação de Marlon de Azambuja foi-lhe gratificante e ao encontro do que pretendia: “numa das vezes que fui lá ao espaço, o menino que tomava conta do cão disse-me que gostou do que fiz ali, ele espontâneamente se impressionou com a estrutura, e isso é muito gratificante. É o melhor que se pode tirar de uma exposição.”

A questão do efémero é algo a que Marlon está habituado. O seu conhecido trabalho de fitas que envolvem objectos urbanos comuns como um candeeiro ou um banco de jardim, duravam apenas semanas. Com esta sua mais recente exposição, não espera que seja diferente.

O deixar intocado o ambiente que encontrou quando lá chegou pela primeira vez, foi a principal intenção. Como tal, Marlon espera que a velha fábrica continue com o seu ambiente próprio e com os mesmos utilizadores do espaço.

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