"A Vida é Bela" do peixe Napoleão

Como é que conseguem levar-nos a imaginar que o peixe Napoleão está no médico, entubado de cateteres de vida que um peixe nunca teve sítio para ter, quando parece óbvio demais perceber que ele morreu naquela manhã

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Cresci com o Napoleão e com a Josefina. Enchiam-me a casa daquele volume gordo que ocupam os aquários em forma de bola e eram os peixes mais sinfónicos do meu mundo. O Napoleão e a Josefina dormiam todas as noites por detrás de um tronco que lhes fazia de lençóis (a infância e nós a acharmos que os peixes dormem como quem ressona e que acordam com remelas como nós).


Uma manhã, quando acordei, o Napoleão não saiu detrás do tronco. Ficaram os meus cinco anos a saber que ele tinha ido ao médico. Todos os dias pedia que o médico o livrasse do internamento prolongado mas não havia dia que o Napoleão tivesse alta. Nunca lhe conheci o médico mas todas as manhãs imaginava o pobre Napoleão deitado numa maca flutuante minúscula, entubado de um cateter de soro que o ligasse às máquinas da saúde (a infância, outra vez, e nós a acharmos que os peixes adoecem como nós). O Napoleão esteve muito tempo no médico. O tempo não tem tempo quando somos pequenos mas somaram-se dias suficientes para eu perceber que o Napoleão nunca mais ia voltar daquele hospital.


Percebo, hoje, que somos tão pouco crescidos quando somos pequenos e que é a falta de sermos adultos que realmente nos torna sãos. Os pais — os heróis do nosso mundo de medos  — transformam-se em pequenos para nos saberem fazer crescidos. Fazem-nos imunes à dor que nos poupam. Deixam de fora o que acham que — não tendo nós que saber com todas as letras — nos pode tornar mais fortes.


Lembro-me d' "A Vida é Bela", o filme que engole tudo o que eu quero dizer em duas horas da maior sensibilidade que o cinema já viu. Guido, a personagem de Roberto Benigni, faz o pino do amor para não fraquejar diante do filho. Inverte a tempestade para Josué não sentir a força do furacão que está a passar por eles.


Guido também nunca diria ao filho que o Napoleão tinha morrido, fosse esse um quarto da dimensão da preocupação dele. Pergunto-me porque é que os pais nos transformam a infância num jogo em que acabamos a rir. Como é que conseguem fazer a roda aos dias para nos fazerem corar de amor, sublimes a encostar devagarinho a porta sobre o que custa, o que dói, o que pode vir a marcar-nos para sempre. Como é que conseguem levar-nos a imaginar que o Napoleão está no médico, entubado de cateteres de vida que um peixe nunca teve sítio para ter, quando parece óbvio demais perceber que ele morreu naquela manhã em que deixou de espreitar por detrás do tronco dos lençóis.


A vida dos pais é traduzir a nossa meninice de coisas menos boas em pistas de um jogo espectacular. É agarrar num megafone para gritar à mãe que estamos bem no meio do caos que não sabemos que se pode estar a desmoronar à volta. Faz-nos falta — aos crescidos — ser pequenos o suficiente para nos tornarmos sãos todos os dias. Havemos nós, um dia, com o orgulho do que nos fica nos genes, de saber encostar a porta sobre o que não queremos deixar que custe, doa ou venha a marcar-nos para sempre.

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