Carta para Bagdad

Imagino-te de cabeça dorida e mala pesada no aeroporto da Portela, imagino aquele quarto sem janela e doí-me um pouco de mim. Mas depois penso que nem a distância, nem as bombas do Iraque nos tiram aquelas gargalhadas

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Reuters

Começou como muitas noites lisboetas começam. Só que desta vez prometi que faria notas mentais. Como era de esperar, a quantidade de álcool ingerida não ajuda a cumprir essas promessas estúpidas. A ressaca matinal não ajuda "either".

Porque é que tem sempre de ser assim quando os vimos?

Começou por um café na Sé. A ler pacotinhos de açúcar. Pergunto-me quantas noites épicas começaram assim. É tão português. Será que é preciso ter vivido fora para apreciar plenamente a deliciosa literatura do pacote de açúcar?

Mas aquela noite era diferente. Vinhas me buscar e partias de manhã.

Deixei os meus amigos e meti-me no táxi contigo. Embarcando para um registo completamente diferente, no qual não teria alinhado, se não fosses tu e não fosses para Bagdad no dia a seguir. Contra esse argumento, não havia discussão possível.

Já nada importava. Tu estavas "in town" e eu também.

Era a minha primeira noite em Lisboa e a tua última. Não sabíamos que nos íamos ver. Tínhamos apenas os quinze minutos do percurso do táxi para fazer o "debriefring" das nossas vidas antes de ir ter com eles.

Podia ter sido uma "conversa de gajas" qualquer, só que tu vais para Bagdad e não sabemos quando será a próxima vez. Nunca sabemos.

Talvez no próximo táxi, me anuncies uma gravidez, que vais casar com um piloto da NATO ou um activista da Greenpeace, ou ainda que vais para another "fucked up place". Ou serei eu?

Tínhamos por testemunha o ouvido curioso e deleitado do taxista e como missão impossível responder a dúvidas existenciais, resolver corações machucados e a crise financeira no curto tempo do percurso.

Quando te vejo assim de relâmpago, enquanto tenho tanta coisa para te dizer e não vou ter tempo… há algo de derradeiramente trágico que nada tem a ver com ires para Bagdad no dia seguinte. A emoção é asfixiante.

Tu e eu fomos "partners in crime" numa vida passada. Fizemos les 400 coups juntas, 30 por uma linha. Fomos irmãs gémeas, regemos um império, vencemos os romanos. Implementamos a paz mundial. Fizemos coisas memoráveis numa vida passada, de certeza. E éramos homens, porque se fossemos mulheres teríamos sido queimadas vivas na estaca.

Contigo já tive dezenas de epifanias. E hoje lembrei-me que nunca escrevi por amizade. Já tinha tentado escrever por ti no dia em que me abandonaste em Timor. Eu que tinha dito que chorar no aeroporto era ridículo… nem sabia eu quantas lágrimas ia ainda derramar naquele aeroporto. Não consegui escrever nada de jeito, só saíam coisas patéticas do género “não me deixes, isto sem ti é uma merda, o meu coração vai contigo”.

Ninguém quer ler isso. Partir já é difícil o suficiente.

Dizer-te adeus dá me vontade de chorar, talvez por me lembrar daquele dia em Timor, talvez porque tipo reflexo de Pavlov, está automatizado. Não sei. Há algo trágico nos nossos reencontros que são sempre mais despedidas.

Talvez porque conhecemos os medos uma da outra. Por sermos parecidas e nos termos habituado a saudade constante que nos cola ao corpo.

Talvez porque chegámos ao bar e dissemos em simultâneo: dois gin tónicos. Deu-nos um ar de Don Draper ao feminino, rimo-nos exageradamente mas era sentido. E sabíamos que ia ser o princípio do fim. A música estava uma bela merda e o sítio era péssimo mas dava para o efeito pretendido. Perfeito para celebrar a decadência que aprendemos a gostar em países para lá de Bagdad…

Ontem apresentaram-nos como “aventureiras”. Mas és tu que andas de colete pára-balas, de blindado e que corres a volta dos canteiros da "green zone" para aliviar a tensão num sítio sem janelas e onde a ocitocina não circula. Amanhã não volto para um "compound" a transbordar de testosterona, metralhadoras, sem uma amiga para planear planos infalíveis que falham.

E imagino-te de cabeça dorida e mala pesada no aeroporto da Portela, imagino aquele quarto sem janela e doí-me um pouco de mim. Mas depois penso que nem a distância, nem as bombas do Iraque nos tiram aqueles momentos, aquelas noites, aquelas gargalhadas.

Mana, eu contigo danço a macarena, ao som de um rádio a pilhas e à luz das velas. E já sabes que por ti p’ro Iraque eu vou...

E enquanto conseguirmos rir demasiadamente alto de tudo, como fazemos, "we will be allright".

"We will be all right."

Até breve, mana de alma.

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