O meu amigo iraquiano

O meu amigo cozinhava, pintava, tocava guitarra, bateria e discursava sobre a maioria dos temas que estivessem em discussão. Não nasceu sem abrigo nem cresceu como tal

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Cristina José Freitas

Aquela que era para ser uma corrida normal tornou-se num momento de reflexão e de analepse. Na mão cheia de vezes que passei a correr por aquela praça, ainda não tinha visto nenhum sem-abrigo a dormir lá, em pleno jardim, quanto mais um casal. Um cobertor cobria as suas caras, por razões que não importa tentar perceber, porque não contribuem para a solução deste problema – a pobreza extrema.  

Quase instantaneamente, lembrei-me de uma pessoa com quem tive a sorte de me cruzar. Um iraquiano de Bagdade mostrou-me o que é ser um sem-abrigo não tão infeliz. Em simultâneo, conheci uma pessoa cujo maior vício (o álcool) a impedia de ser mais do que já era. O meu amigo cozinhava, pintava, tocava guitarra, bateria e discursava sobre a maioria dos temas que estivessem em discussão. Não nasceu sem abrigo nem cresceu como tal. Fugiu de uma guerra. Disse-me que preferia viver nas ruas coimbrãs, aonde chegou em 1999, do que ter quatro paredes numa cidade bombardeada. É um sobrevivente. Não tanto de uma guerra, mas mais de um divórcio.

Vi-o oscilar entre a embriaguez e a sobriedade mais vezes do que eu gosto de me lembrar. Quando estava mentalmente estável, participava em iniciativas no âmbito da inclusão: ajudava na sopa dos pobres, distribuía mantimentos e roupas pelos outros pobres e sem-abrigo e fazia o que podia para se manter ocupado.

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Não nasceu sem abrigo nem cresceu como tal Cristina José Freitas

Quando conseguia reunir algumas moedas, seguia quase em modo piloto automático para a tasquinha a qual dava o nome de Faculdade de Letras (antes de fugir de Bagdade, os seus estudos eram da área das Letras). Depois disso, não demorava muito a perder a compostura e a revoltar-se, demasiadas vezes, contra aquelas pessoas que lhe davam um lugar onde dormir, sempre que ele aparecia lá em casa. Algures na sua cabeça, surgia a ideia que nós não o queríamos lá e que era um fardo. Pedíamos-lhe calma e que ficasse. Saia porta fora e ficávamos dias e dias sem o ver. Voltava sóbrio, pedia desculpa e um novo ciclo começava. 

Quando lhe pedi que me mostrasse o que fazia no dia-a-dia levou-me aos sítios que costumava frequentar: almocei com ele numa cozinha solidária, destinada a pessoas com poucas ou nenhumas possibilidades económicas; apresentou-me a sua amiga peixeira no mercado e o seu amigo toxicodependente explicou-me porque é que as prostitutas não se deixavam ver durante o dia. 

O único momento em que eu senti que o meu amigo de Bagdade queria voltar à sua terra Natal foi quando, durante um filme que víamos, surgiu uma personagem com o mesmo nome que uma sobrinha sua. Perguntei-lhe onde estava a rapariga. Respondeu-me o seguinte: “não sei se está viva ou morta”. 

Querido amigo, espero que a tua sobrinha esteja bem. Espero também que tenha a tua criatividade e a tua capacidade de sorrir (quase) todos os dias.

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