Podemos amar alguém que não ouve a mesma canção?

Uma vivência a dois a longo prazo tem de ter uma sólida amizade como cimento, o que implica cumplicidade e partilha. E o ponto é mesmo esse: quaisquer que sejam os valores fundamentais, o nosso parceiro tem de os partilhar

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Reuters

Carlos Tê escreveu que não. Mas porquê? Não é o amor aquela força misteriosa e poderosa que é mais forte que tudo? Não, não é… Quantos casais se aguentam muito tempo se não estiverem em sintonia no essencial? A grande maioria nem se chega a aproximar. É verdade que a paixão pode encobrir muitas distâncias mas, uma vez finda, tudo vem ao de cima. Só nas telenovelas, e nos contos de fadas, a gata borralheira casa com o príncipe e vive feliz para sempre.

Na realidade, o príncipe tem nojo da gata borralheira: da forma com ela se veste, fala, pensa e actua socialmente. O príncipe quer uma princesa. Ou, pelo menos, uma tipa sofisticada… E é natural que assim seja. O modo como fomos educados, as escolas que frequentámos, os meios sociais que habitamos, tudo condiciona os nossos gostos, as nossas atitudes, os nossos valores. Os exemplos abundam: ideologias políticas diferentes, religiões distintas, estatutos socioeconómicos diferenciados, ou até coisas mais pueris como afinidades clubísticas ou culturais diversas, podem ser graves entraves a um relacionamento feliz.

Como pode um benfiquista fanático viver com uma portista inveterada? Jornada após jornada, a discussão persegui-los-á (com árbitros à mistura e tudo). Como pode um intelectual cinéfilo viver saudavelmente com alguém que tem o “Indepedence Day” como filme favorito? Como pode um verdadeiro comunista estar casado com uma burguesa neoliberal? Como aceitará ele a defesa que ela faz dos interesses capitalistas? E como encaixará ela a vontade revolucionária dele?

O mais provável era nem sequer conseguirem acordo quanto ao regime legal de casamento… E como pode um muçulmano casar com uma hindu? De que religião serão os filhos? Terá ela de fazer o ramadão? Que sacerdote celebrará o casamento? E como se darão as famílias? Em termos de classe social, como pode uma beta da Lapa se interessar por um proletário da margem sul? Vão viver aonde, comer em que restaurantes, frequentar que ambientes juntos? Por que padrão de vida se guiarão? Ele não consegue sustentar-se no nível dela. Ela nunca aceitaria descer ao dele. É verdade que tudo se atenua se cada um não for um verdadeiro exemplar do rótulo que ostenta: pode ser um benfiquista relaxado, um pseudo-intelectual que afinal não se identifica verdadeiramente com os filmes que vê, um muçulmano liberal, um simpatizante comunista não praticante ou uma habitante da Lapa com poucas afinidades betas. Mas, nesse caso, o rótulo não é um bom preditor dos valores.

Na maior parte dos casos, porém, a nossa religião, ideologia política, classe social ou preferências culturais espelham bem os nossos valores. Por isso os rótulos têm importância. E a realidade não deixa margem para ilusões: os casais felizes gostam da mesma canção. Não têm de estar de acordo em tudo nem de partilhar todos os interesses. Mas os valores fundamentais e a sensibilidade têm de ser comuns.

Uma vivência a dois a longo prazo tem de ter uma sólida amizade como cimento, o que implica cumplicidade e partilha. E o ponto é mesmo esse: quaisquer que sejam os valores fundamentais (e todos nós temos os nossos valores fundamentais), o nosso parceiro tem de os partilhar. Essa é a verdadeira canção que os amantes têm de gostar de ouvir para se poderem amar.

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