Graça Dias: a propósito de uns desenhos coloridos

O que eu gostava mesmo era de desenhar ”livremente”; com lápis, com caneta, com cores, com o que tivesse à mão, coleccionando vistas, sobreposições, acidentes, deformações, insólitos bocados de arquitecturas existentes

Fotogaleria
Rui Gaudêncio
Fotogaleria

Acabei o curso de Arquitectura na antiga ESBAL, em 1977. Desde 1973 que dava aulas de Desenho no “Preparatório”, nunca tendo pegado nas rottrings que não para dar forma, vagamente rigorosa, aos encomendados trabalhos escolares.

O que eu gostava mesmo era de desenhar ”livremente”; com lápis, com caneta, com cores, com o que tivesse à mão, coleccionando vistas, sobreposições, acidentes, deformações, insólitos bocados de arquitecturas existentes, cujos ”alçados” esborrachava em planos avivados pela marcação profunda de sombras plausíveis.

No último ano do curso, colocado fora de Lisboa, dividi as semanas, de comboio ou à boleia, entre a ESBAL e a Secundária de Alcanena.

O projecto final que entendi fazer (viviam-se anos de grande ”liberdade” propositiva) foi uma casa para um colega de Educação Física que dizia gostar de vir a ter muitos filhos e se chamava Gregório. Aos penosos desenhos a 1:50 da Casa G, entendi então, juntar um caderno de folhas de papel cavalinho profusamente desenhadas e coloridas. A inspiração eram os furos do horário e os passeios pela pequeníssima Alcanena. Reproduzia ou recriava casas rurais alegradas com azulejos correntes, armazéns proto industriais zincados, esquerdos/direitos Estado Novo de província e marmorite, cunhais caiados, gradeamentos românticos por sobre planos grandes vernáculos.

Escrevi um texto de acompanhamento, questionando a hipótese de uma arquitectura simultaneamente erudita e popular. ”Arq. POP, há?” assim se chamava.

Já então me começara a habituar a dar o meu trabalho à crítica de um recente ex-professor. Manuel Vicente tinha-nos garantido um ”Semestre” de aulas no Verão anterior, antes de se decidir a voltar para Macau. Mas apareceu entretanto, em Lisboa, umas vezes, e eu, que vivia perto do seu atelier, não perdi a oportunidade de lhe levar os exercícios para lhes compreender as limitações, os erros, os equívocos; também para confirmar intuições, suspeitas, hipóteses de lhe agradar, porque tinha gostado apaixonadamente das suas aulas; tinha, através das conversas e discussões críticas que provocou, retomado o gosto inicial pela arquitectura e ultrapassado o período de “nojo” e tecnocracia que a Escola, a partir do 2.º ano (e já ia no 5.º), me provocara; porque estava de novo decidíssimo a ser arquitecto, a fazer arquitectura, a entregar-me à arquitectura, a apreender os segredos do ofício, precisava de continuar a tê-lo como professor.

Como sempre depois, ao longo da nossa longa e amiga relação, não usou ”pezinhos de lã” nas críticas; a Casa G foi violentamente questionada, a minha cabeça chocalhada de novo. Mas os desenhos, os muros de Alcanena, as casas texturadas atrás, os volumes tornados abstractos e ruidosamente coloridos que lhes mostrei, foram valorizados; aquela específica análise a que eu me dedicara, encorajada.

No Outono de 1977 perdi a timidez e escrevi-lhe para Macau. Pedi-lhe para trabalhar no seu atelier. Creio que no Natal, em Lisboa, tivemos uma conversa. Muito por causa dos meus desenhos, achava-me indicado para um trabalho que propusera à Gulbenkian de “levantamento” do património construído de Macau.

Passou-me uma carta que me autorizava a reclamar na ESBAL os 20 ”contos” que ainda lhe deviam das aulas de 1976 e, com esse valor (sei que agora são ”só” 100,00 €, mas na época era bastante dinheiro), deveria comprar um bilhete na Air Índia e aparecer-lhe em Macau.

Macau era uma cidade amável, muito densa e cheia de arquitecturas, tabuletas, ruas e becos surpreendentes. No atelier da Volong Kai, muito bonito e ainda em obras, António Noras, um desenhador experimentado que MV trouxera de Lisboa, comandava um disciplinado e simpático grupo de quatro ou cinco colaboradores chineses que com ele iam aprendendo as subtilezas do elaborar dos projectos. Eu olhava o fazer e a montagem do fazer.

Rapidamente estabeleci uma rotina: de manhã passeava pela cidade, metia o nariz em tudo, fotografava, desenhava, explorava lugares que o próprio MV desconhecia. À tarde, no atelier, ia trabalhando em pequenas “pontas” (fotografar uma maqueta, ilustrar uma Memória Descritiva, procurar um processo nas “Obras Públicas”, regrar a distribuição esquemática de uns fogos a partir de um qualquer esquisso cabalístico).

Assistia, também, às correcções que MV introduzia nos processos já iniciados: as folhas ligadas umas às outras com fita-cola, a “inversão” em fotocópia a partir do vegetal procurando diferentes possibilidades, a “pintura” a tinta branca correctora anulando linhas ou valorizando-as com a esferográfica ou lapiseira, as palavras que sublinhavam a razão de ser das opções; o assentimento que me pedia, lisonjeiramente, a mim, que muitas vezes não tinha sequer percebido o problema todo.

Os meses foram passando. Não podia concorrer, com a minha fraquíssima prática, com o escol de desenhadores chineses comandados por Noras, nem era para isso que tinha vindo para Macau; por outro lado, o jorro inventivo, a permanente motivação, a excitação das solicitações, a informada e determinada criatividade de MV, dispensavam qualquer colaboração.

Perguntava-me qual poderia ser o meu contributo, naquele espaço de enorme criatividade e poderosa produção; fui-me apercebendo quando MV estava mais “em esforço”; sobretudo quando tinha que escrever (as cópias, amontoavam-se dobradas, para Licenciamento, à espera da Memória Descritiva sempre adiada) ou perspectivar, em desenho, algum detalhe, uma ideia, uma hipótese, um estado, uma resposta. Desenhos que exigissem mais do que um rápido minuto, para MV, eram uma chatice. Preferia guardar as coisas na cabeça e descrevê-las através da sua alegre oralidade ou desenhá-las com os gestos das mãos ou dos exemplos, surpreendendo-nos pela exactidão precisa da metáfora surgida.

Comecei, então, a ensaiar pequenas escritas; ia desembaraçando Memória Descritivas, ilustrava-as com fotomontagens, perspectivas dos ambientes imaginados, explicações mais extraordinárias que aquelas a que MV quereria ter chegado.

A compreensão “literária” das razões da invenção e das opções arquitectónicas e urbanas dos sucessivos projectos do atelier, a partir de aí, foram o modo através do qual me aproximei da compreensão da arquitectura, foram o modo, quiçá heterodoxo, de como me tornei arquitecto.

Depois, embora o fetiche não me interessasse, também já mexia com os pormenores que acompanhavam a Execução, já colaborava na sua simplificação, economia ou vontade de excesso. Já tomava o todo, primeiro, compreendendo as pontes que partiam do todo e a ele regressavam, iluminadas pelos significados renovados, reclamados ou tão só reunidos de modos diferentes.

Estagiei e atrapalhei o atelier durante seis meses e trabalhei outros 18, depois, já com alguma segurança e capacidade de decisão. MV tratou-me sempre como igual, com amizade e paciência (ainda que por vezes perdesse a paciência...). Quando me sentiu preparado, incentivou-me a partir. A amizade ficou, mais a vontade da crítica e reflexão comuns, desses nossos primeiros anos juntos.

[Atrás de mim, viaja alguém que nunca se cala nem surpreende. Sabe em que troços o comboio irá acelerar, quando chegará o mau cheiro “das celuloses”, quando irá aparecer a praia, qual a última “aplicação” que o autoriza fazer não sei o quê com o telemóvel. Um chato, um sabe-tudo, um personagem insuportável. Que falta me fazes, MV, para nos rirmos destes diálogos que mimávamos sérios, entre o Silva, lá do Banco e o Serra, comercial...]

Sugerir correcção
Comentar