Jogador de rua

Comecei por ser gozado, depois temido, por fim, respeitado. A curiosidade, essa, nunca cessou. Bastava aparecer um adversário que nunca tivesse presenciado a minha batida em alicate e logo me perguntava onde aprendera a jogar assim

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Peter Ankerstål/Flickr

Que eu saiba, havia apenas duas formas de jogar. Juntava-se o dedo médio à parte de trás do polegar, formando um pequeno círculo, mantinham-se o mindinho, o anelar e o indicador esticados, formando como que uns cornos de três cabeças, e disparava-se. A segunda era em tudo semelhante, mas ao invés do dedo médio, juntava-se o indicador ao polegar, deixando o mindinho, o anelar e o médio não só esticados como alinhados. Eu criei uma terceira forma de jogar à carica. Encaixava o indicador na parte de trás do dedo médio (falangeta), formando uma espécie de alicate — ou peixe, se preferirem, já me coloquei em situações bem mais fáceis de descrever — e direccionava a carica para onde queria. Em mais nenhum momento da minha vida tive tão absoluto controlo sobre as minhas mãos. À baliza. Nos matrecos. Na escrita. Nem mesmo quando aponto o dedo a alguém.

Comecei por ser gozado, depois temido, por fim, respeitado. A curiosidade, essa, nunca cessou. Bastava aparecer um adversário que nunca tivesse presenciado a minha batida em alicate e logo me perguntava onde aprendera a jogar assim. O meu pai, de quem herdei a cara e as mãos — não os pés, felizmente —, era o maior dos entusiastas. “Inventou ele”, dizia, enquanto eu me exibia para os seus amigos. Ainda hoje, nos jantares de família em que para não falar do presente nos entretemos a recordar o passado, há sempre um tio ou um primo que me oferece mais uma cerveja e pede para fazer aquilo com os dedos, seguido de um “onde raio é que ele terá aprendido tal coisa?”

Aprendi na rua, sei-o agora. Será precisamente por isto que, aqui e ali, bebo demais. No topo de cada garrafa vejo a rua da minha infância, garrafas com abertura fácil, não obrigado. Uma rua pequena e sem saída. Uma rua em que as balizas eram feitas com paralelos arrancados ao chão. Em que os pássaros eram atacados a pedra e chumbo, mas não se deixavam abater. Uma rua carregada de buganvílias e amores perfeitos, onde se roubavam beijos e fumava às escondidas. Já estou a fazer deste texto um jardim, hão-de perdoar-me, pela enésima vez. Quando cometemos o erro de ser sentimentais uma vez, corremos o risco de ser sentimentais para sempre. Não havia amores perfeitos na minha rua, na minha rua não havia flores, só palmeiras e os beijos e os cigarros, quando os havia, era um quarteirão acima.

Durante um almoço em casa de um amigo, o filho de dez anos agarra na carica de uma cerveja e põe-se a jogar no chão da cozinha. Pergunto-lhe quem lhe ensinou e diz-me que aprendeu num "workshop" organizado pela Coca Cola. A expressão é sua. Queres jogar?, desafiava-me. Queria a todo custo ver-me jogar. Só na rua, respondi-lhe. Lá saímos à rua, com a autorização do pai — o mundo agora é perigoso, mesmo que a nossa rua não seja —, e mostrei-lhe do que era capaz. Gostou tanto da minha batida de alicate que prometeu nunca mais jogar de outra forma.

Não me tomem por conservador. Ou tomem, se assim o entenderem. Longe de mim defender o regresso do jogo da carica. Estou pacificado quanto a isso, sobretudo agora que tenho a certeza de que o meu dom não morrerá comigo. Preocupo-me apenas com a extinção da vida na rua. Vejo Neymar jogar, jogar no campo como se jogasse na rua, a encarar cada domingo de jogo como se fosse terça-feira de Carnaval, e torço para que não venha para a Europa tão cedo. Aproximo-me dos jovens asiáticos e africanos que todas as tardes de sol jogam na relva da Alameda e peço-lhes para jogar com eles. Para que, mais do que um jogador de fim-de-semana, também eu nunca deixe de ser um jogador de rua.

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