O elogio da espera

Passam agora 60 anos que estreou no Théâtre de Babilone, em Paris, "En attendant Godot", de Samuel Beckett, uma peça de teatro sobre a espera

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Marco Martins

Tenho, na minha vida, esperas memoráveis. De estar à espera de alguém — num tempo sem telemóveis, bips e aparelhos de sinal sonoro, num tempo em que o atraso não era um pecado económico — sem saber se esse alguém viria, se já se teria ido embora, se se teria esquecido, se se teria enganado, se eu me teria enganado, se teria acontecido alguma coisa.

Mas, nesse tempo de esperar, havia algo que acontecia: primeiro um sentimento de ansiedade crescente, de olhar em volta, de mexer no relógio, de meter e tirar as mãos dos bolsos, de sentar e levantar e procurar por todo o lado um rosto conhecido. Depois outra coisa: uma sensação diferente do tempo, que parecia abrandar. Havia um silêncio mental que me permitia ver com mais atenção aquilo que me rodeava. Podia estar numa rua ou num lugar familiar, mas a espera mudava esses espaços e eu descobria neles pormenores em que nunca tinha reparado. As casas, árvores, sinais ganhavam dimensões ocultas e pareciam transformar-se, devagar, diante dos meus próprios olhos.

A espera é algo que nos transforma e transforma as relações que temos com o que nos rodeia. É um tempo que nos liberta dos compromissos — económicos, pessoais — e nos obriga a olhar o mundo e a olhar para nós próprios desprovidos de propósitos. É um tempo de atenção, dizia Simone Weil, um momento em que sentimos a própria passagem do tempo, escreveu Henri Bergson. É um momento de terror, de libertação, de encontro connosco próprios, concluo eu.

Passam agora 60 anos que estreou no Théâtre de Babilone, em Paris, uma peça de teatro sobre a espera. Talvez a primeira peça de sempre a falar da espera. "En attendant Godot", de Samuel Beckett, já traduzido para português como "À espera de Godot", "Esperando Godot" e "Enquanto se espera por Godot", é um dos mais famosos textos do século XX e nele tudo espera: as personagens, os espectadores, o próprio ser humano.

A peça já foi interpretada como uma peça niilista, absurdista, existencialista, ou até mesmo religiosa, mas possível que Beckett, o grande humorista da infelicidade, quisesse também, e simplesmente, mostrar-nos o mundo desconhecido e deslumbrante que reside no tempo de quem espera.

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