“Casablanca”, de Michael Curtiz (1942)

Há obras de arte de que não se consegue fugir. Cedo ou tarde, elas hão-de descobrir-nos e vir ter connosco, independentemente de tentarmos opor-lhes resistência

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Há obras de arte de que não se consegue fugir. Cedo ou tarde, elas hão-de descobrir-nos e vir ter connosco, independentemente de tentarmos opor-lhes resistência. Infelizmente, nos dias que correm, isto também se aplica a toneladas de lixo audiovisual, radiofónico, televisivo. Para este, há que construir abrigos, trincheiras, casamatas, já que a emigração dificilmente dará o resultado esperado, neste mundo “globalizado”: é mais fácil encontrar um emprego numa caverna remota do Afeganistão do que evitar, digamos, farrapos de musiquetas do Justin Bieber ou quejandos, ecoando de fraga em fraga até ao incauto tímpano final.

De volta aos filmes: há muitas formas de chegar a “Casablanca” ou de “Casablanca” chegar até nós. Até nós chega a fama, por indicações cruzadas, por referências em textos, programas de televisão, conversas de amigos. Com as edições em DVD, apesar do nosso minúsculo mercado, é possível conhecê-lo, vê-lo, revê-lo, apreciá-lo mais profundamente do que a fugidia vez que, antigamente, se podia ver no cinema, ou na televisão, quando decidem passá-lo.

E há muito para ver. E para ver muitas vezes. Não só resiste a esse tratamento como o pede. Quantas vezes o teremos de ver para reparar em pormenores que, todos juntos, um dia quase explicarão o que é “uma experiência cinematográfica significativa” para além de uma frase bombástica dos estúdios?

Quando tudo encaixa, quando o nível de qualidade é superior e inclui argumentistas, director de fotografia, compositor da banda sonora, canções, actores, realizador, constrói-se um ambiente que nos envolve, que nos convence, que nos convida a entrar e a testemunhar a acção e os diálogos. E nós acreditamos. E, já na condição de figurantes, vivemos a história.

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Se nos falta coração ou alma para compreender o que atrás se tenta dizer, façamos como aquele a quem, faltando ouvido, se socorre da corda anterior para afinar a seguinte, por comparação. Então, por comparação, o que é que falta, por exemplo, a “Ter ou Não Ter”, para atingir esta grandeza? Afinal, tem Humphrey Bogart, tem Lauren Bacall, tem Walter Brennan e até foram buscar a “Casablanca” Marcel Dalio e Dan Seymour. Mas falta argumento, falta iluminação, falta aquele regresso ao passado para estabelecer a ligação entre Rick e Ilsa, falta Claude Rains como chefe da polícia que fecha o café de Rick porque se diz chocado por saber que ali se joga, mas que, acto contínuo, embolsa os seus ganhos dessa noite, agradecendo; falta Sydney Greenstreet como dono do café rival Blue Parrot, mas, essencialmente, como uma instituição, uma montanha, que se digna mover-se; falta Peter Lorre como ansioso traficante de salvos-condutos e controlado jogador de roleta, falta Conrad Veigt como o ameaçador, brutal e cavalheiresco Major Strasser, falta Paul Henreid como o lendário resistente Victor Laszlo, falta um Humphrey Bogart mais pausado, mais profundo, mais verosímil, mais bem dirigido, e falta Ingrid Bergman, aquela beleza luminosa, aquela interpretação delicada, aquelas lágrimas, aqueles sorrisos...

E os diálogos que interligam tudo isto, com tiradas inesquecíveis até ao finalmente célebre “começo de uma grande amizade”.

Capitão Renault: Por que veio para Casablanca?

Rick: Por causa das águas...

Capitão Renault: Por causa das águas! Mas isto é no meio do deserto!...

Rick: Fui mal informado...

Vejam esse tempo em que a esperança de chegar ao oásis passava por Lisboa.

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