Portugal, Brasil, Angola: porque me ufano de meus países

Do Brasil, a essência, de Portugal a afirmação, de Angola a oportunidade. Uma imigrante profissional transforma o sentimento da novidade em necessidade

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Finbarr O'Reilly/Reuters

Há 12 anos, arrumei as malas em busca de uma grande aventura. Deixei o coração livre para uma nova oportunidade, mas trouxe na bagagem, directamente do Recife, a certeza das grandes amizades, o cheiro da tapioca e um modo de ver a vida tão leve que os anos passaram “devagarinho”, como a brisa da praia de Boa Viagem no final de tarde.  Sair do “casulo” é difícil, mas na altura havia uma disfarçada ingratidão por parte de meu país, que nos idos do ano 2000 carecia de oportunidades para jovens que não nasceram em berço de ouro.

Com muitos sonhos e pouca experiência, cheguei a Lisboa. A recepção foi estranha porque o frio era muito, a roupa era pouca e as letras do português lusitano eram engolidas em sílabas imperceptíveis. Lembro-me que, quando eu era criança, brincava com os meus primos a falar com a boca cheia de pitangas tiradas do pé. Me remetia ao mesmo. Para mim, o “caxodré” não era o mesmo do que o C-A-I-S- DO S-O-D-R É, com as vogais bem abertas.  E quem disse que o “Culomb” era o centro comercial, piorou: CÓLÓMBÓ! Ah, agora sim percebi....

Mas morar fora do "habitat" natural deveria ser regra de vida. Vale mais do que 10 anos de análise e ainda nos ensina a conviver com uma pessoa que não se conhecia tão bem: nós mesmos. E para quem é uma imigrante profissional, como eu, primeiro estranha-se, depois entranha-se. Transformamos o sentimento da novidade em necessidade. 

Nos primeiros dias, nada é familiar, passa um mês, um ano e já começamos a conhecer a senhora do café, a miúda que passeia o cão e o senhor José da mercearia. Puxamos conversa com uma estranha como se fosse a coisa mais natural do mundo. E a rotina torna-se finalmente rotina. E, quando me apercebi, Lisboa tornou-se a minha casa. E ver a ponte 25 de Abril é tão familiar quanto eu achava que era ver a cidade de Olinda ao fundo da minha janela.

Portugal teve o poder de me fazer rapidamente adulta, de saber o que é trabalho e de dar valor aos momentos mais banais, como sentar numa praça para ler um livro sozinha a aproveitar aquela luz fluorescente que encanta artistas de todo o mundo. Me fez chorar muitas vezes, como não deveria ser diferente no país do Fado, mas os choros passam, assim como passam pessoas desinteressantes, os sentimentos e as estações. Olho para a cidade com um suspiro nostálgico, mais uma das coisas que aprendi por aqui e que não é necessariamente triste. Pelo contrário. Suspiro porque me encontrei.

Desafio é uma afirmação

Mas as voltas dão-se tanto nas rodas gigantes quanto na vida. Convidaram-me para mais um desafio: Angola. A cabeça entra em parafuso, mas a palavra desafio já é em si quase uma afirmação. E com as malas cheias de roupas de Verão, pousei no aeroporto 4 de Fevereiro. E aquele vento quente e húmido de Luanda colou em mim de uma forma tão brusca, tão visceral, que a primeira impressão era de que eu tinha que sair rapidamente dali, pois a cidade poderia me engolir.

País de contrastes, de gente forte, de uma cultura completamente diferente da do Brasil e de Portugal. A língua portuguesa é um mero detalhe. Aprendi que o “estou a chegar à nossa reunião” demora entre 5 minutos e cinco dias.  Que a morte de um familiar é comemorada com uma festa para celebrar os feitos do falecido. Que dançar agarradinho não é sinónimo de romance e que viver é tão bom que tudo tem que ser para hoje. O amanhã é só amanhã.

Já passaram cinco anos. Angola, que era somente trabalho, começou a ser de amigos. O caos do trânsito deixa de ser pavoroso para ser somente um tempo de espera entre duas reuniões. Consegue-se, claramente, sentir numa viagem ao interior do país que a humanidade só pode ter nascido a partir de lá. O deserto do Namibe é a prova real de como o mundo deve ter sido há muitos mil anos atrás. E sim, aprendi a lidar com “pessoas” na forma mais pura de ser. Uma bênção para poucos.

E o que me ufano de meus países é que, em cada sítio, sou uma estrangeira que olha com os melhores olhos tudo o que pode ser absorvido. Do Brasil, a essência, de Portugal a afirmação, de Angola a oportunidade. O mundo parece não ser tão grande assim - o bolso é que pode ser curto para pagar a passagem- por isso procuro sem medo outras paragens que não limitem o meu olhar ufanista. Nunca estarei numa rede na praia da Boa Viagem, a comer mufete enquanto oiço a melodia da Amália. Nunca terei tudo, de facto. Mas sim, sei e sinto o que é tudo isto. E quero mais.

Ps: O ufanismo (jactância ou auto-vangloriação de um país) é uma expressão utilizada no Brasil em alusão a uma obra escrita pelo conde Afonso Celso, cujo título é "Porque me Ufano do Meu País". Na verdade, os ufanistas acabavam por extrapolar ao se vangloriar desmedidamente das riquezas brasileiras, muitas vezes expondo a si e ao país a uma situação que seria interpretada por outros como jactância, bazófia e vaidade.

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