“Deadwood” e as vantagens do colectivo

Como tantas outras boas séries, as audiências não foram amigáveis a “Deadwood”, cancelado antes do seu tempo. Tudo que é dito na série é poesia, principalmente os palavrões

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Desde que o drama de 40-50 minutos se estabeleceu como um dos grandes formatos televisivos, tem sido utilizado em muitas séries para explorar a psicologia do protagonista — “Sopranos” e “Mad Men” serão dois dos exemplos mais aclamados.

Mas outra abordagem possível para o formato consiste em fornecer uma crónica de toda uma comunidade. As próprias características do drama televisivo “à HBO” — estrutura episódica, elencos alargados, uma continuidade limitada apenas pelos produtores e pelas audiências — incentivam esta estratégia, na qual se caminha de personagem para personagem, criando uma rede cada vez mais complexa em serviço (esperemos!) de ideias maiores. Nisto, estas séries são o herdeiro directo daqueles romances épicos do século XIX, também eles (convém não esquecer) originalmente publicados em parcelas.

O grande triunfo do modelo que acabei de descrever é certamente “The Wire”; mas quero hoje falar do seu irmão negligenciado, a série que me abriu a mente para as possibilidades do formato — “Deadwood”.

Grandes Ideias


“Deadwood”, baseado em factos históricos, descreve o percurso de uma aldeia construida em território índio, e por isso fora da jurisdição americana, perto da qual se descobre ouro. Entre os seus habitantes está Al Swearengen (Ian McShane), um dono de "saloon" e criminoso que no primeiro episódio se mostra cruel a ponto de planear matar uma criança para fortalecer um álibi, e o recém-chegado Seth Bullock (Timothy Olyphant), agente da lei com um rígido código moral. Swearengen, a criação mais brilhante do programa, é um tirano maquiavélico que, secretamente, sofre de um excesso de empatia. Bullock, por sua vez, em quase tudo o arquétipo do herói do faroeste, não consegue escapar à brutalidade psicótica que se esconde debaixo do seu heroísmo. Ao longo de três temporadas, estas duas personagens criam uma estranha aliança, defendendo a independência da sua aldeia contra os interesses do governo — e do capital, personificado na figura aterradora de George Hearst (Gerald McRaney).

Há muitas Grandes Ideias em “Deadwood”, demasiadas para esta coluna. Mas também há razões mais terra-a-terra para gostar do programa: um dos melhores elencos de sempre, por exemplo (William Sanderson, viscoso e tragicómico como E.B. Farnum; Powers Boothe, cheio de pinta e de sadismo como Cy Tolliver; Robin Weigert, a recriar Calamity Jane com mais dignidade e ternura do que alguma vez foi feito). Há também um estilo visual, subtil mas único, com os seus tons de castanho, os frequentes planos de interiores através de uma porta ou janela, e sempre com sombras, como a história. E há, acima de tudo, aquela paixão infindável pela linguagem, que faz com que cada linha venha carregada de várias camadas de sentido, com um glacé de profanidade. Tudo que é dito em “Deadwood” é poesia, principalmente os palavrões.

Como tantas outras boas séries, as audiências não foram amigáveis a “Deadwood”, cancelado antes do seu tempo. Mas quanto mais volto ao final, àquela triste vitória em que nenhuma personagem acredita, enquanto o espectador ouve Bruce Springsteen a entoar o espiritual “O Mary Don’t You Weep”, mais acredito que se trata de uma conclusão perfeita — triste, enigmática e tão humana.

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