Mulheres assumem papel de cuidadoras

Mobilizam-se redes informais de apoio a quem foi preso e às crianças e aos idosos que ficam atrás

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Paulo Pimenta

Não há um muro em volta, Andreia não está presa, mas o controlo penal molda-lhe os dias. A mãe e a irmã estão na prisão feminina de Santa Cruz do Bispo, em Matosinhos, e o pai na contígua, o irmão e o cunhado estão na de Paços de Ferreira, e ela está a fazer as vezes de mãe dos sobrinhos de 15 e 13 anos.

A família foi enrolada num dos maiores processos de tráfico de droga julgados em Portugal – 85 pessoas, distribuídas por três grupos, foram acusadas de traficar cocaína e heroína entre 2012 e 2015 no Grande Porto; já em Abril deste ano, 61 foram condenadas, 26 das quais a penas de prisão efectiva. No mesmo processo, seguiu um tio de Andreia, a ex-companheira do irmão e o seu actual companheiro.

Há muito que, como mostrou a antropóloga Manuela Ivone Cunha, parece haver uma ligação directa entre as prisões e os bairros minados pelo tráfico de drogas. As estratégias de controlo da venda directa enchem as prisões de pessoas unidas por laços de parentesco, amizade ou vizinhança.

Mobilizam-se redes informais de apoio a quem foi preso e às crianças e aos idosos que ficam atrás, nota Rafaela Granja, autora do livro Para cá e para lá dos muros – Negociar relações familiares durante a reclusão (2017), resultado da tese de doutoramento em sociologia que defendeu na Universidade do Minho (2015). Tais cuidados tendem a ser assumidos por mulheres, isto é, companheiras, mães, irmãs, tias, “numa clara reprodução da desigualdade de género, da desigualdade na divisão do trabalho”.

“Muitas vezes, estamos a falar de famílias de baixos recursos”, observa aquela socióloga. A reclusão de um ou vários membros agrava ou catalisa essa situação de vulnerabilidade. “Quando não há disponibilidade económica, o número e a frequência de visitas tende a diminuir. Por vezes, têm de ser feitas escolhas difíceis entre mais visitas e mais conforto ou bem-estar. Nalguns casos, estamos a falar de coisas tão básicas como não ir ao médico para ir à visita.”

Andreia ia nos 21 anos e estava a terminar o curso de estética quando a família foi detida. Demitiu-se e assumiu a guarda dos sobrinhos. Não tem só de garantir que os rapazes recebem os cuidados adequados. Tem de auxiliar a mãe, o pai, a irmã e o irmão, distribuídos por três cadeias. Passou a organizar-se, com rendimento social de inserção, abonos, pensões de alimentos, em função dos tempos das prisões.

Entre as 11h e as 12h e entre as 17h e as 18h, está de telefone em riste. Antes do almoço ou antes do jantar, formam-se filas a partir das cabines das prisões. O Regulamento Geral dos Estabelecimentos Prisionais, em vigor desde 2011, só permite a cada um fazer uma chamada de cinco minutos por dia nas cabines. Acontece estarem “todos” a tentar telefonar ao mesmo tempo. “Dão um toque. Se tocar mais de que quatro vezes já come a chamada. Tenho de ter cuidado para não rejeitar a chamada. Já me aconteceu rejeitar e comer a chamada”, diz ela.

Ao fim-de-semana, é um rodopio. “Eu tenho de me dividir. As visitas não são à mesma hora e como é evidente há visitas que eu não vou”, diz Andreia. A visita do irmão ora é de manhã, ora de tarde. Quando calha ao sábado de manhã, coincide com a do pai. “Para ir a um, não vou a outro.” O pai pede há muito transferência para Paços de Ferreira. “Sempre era mais fácil”, parece-lhe. Podiam apoiar-se um ao outro. Até podiam partilhar a cela como a mãe faz com a irmã, em Santa Cruz do Bispo.

Às vezes, Andreia e os rapazes vão de autocarro. Outras vezes, apanham boleia. Há uma tia, a Lígia, que os conduz quando pode. Não entram mais de três pessoas de cada vez. Juntam-se as visitas da mãe, Ana, e as da irmã, Patrícia, e assim já podem entrar seis familiares. Para facilitar a vida da ex-cunhada, Cira, o filho dela, de oito anos, entra em nome da avó Ana. Assim, a outra avó, a que cuida dele, pode entrar com a irmã dele, de quatro anos, e uma tia, que lhe dá apoio.

Não vai carregada com comida. E não é só pela falta de dinheiro para isso. O regulamento reduziu a entrada a um quilo por semana. Leva-lhes pão fatiado, croissants, peru, frango ou vitela. Na feminina de Santa Cruz do Bispo, só deixam entrar carne se for assada e fatiada. Há uns tempos, a tia Lígia levou bifanas e ficou à porta.

Lígia nem gosta de se lembrar. “O guarda disse: ‘Essa carne não entra.’ Não gostei do tom. Perguntei. ‘Porquê?’ Ele respondeu: ‘Não é carne assada.’ E eu perguntei: ‘Qual é a diferença? A carne assada a gente mete no forno, a bifana vai para o tacho.’ Ele ficou irritado. E eu pequei porque respondi. ‘Você vai baixar o dedo porque não está a falar com um familiar seu!’” Ficou três meses inibida de entrar.

Apesar das dificuldades, não passa pela cabeça de Patrícia desamparar a família. “Somos uma família unida”, resume. No seu trabalho de campo, Rafaela Granja tem encontrado em mulheres como Andreia “orgulho por ajudarem as pessoas que estão na prisão e por evitar que as crianças vão para instituições”. “Orgulham-se de fazer subsistir um sentido de família, um sentido de família unida, resiliente”.

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