A fábrica de cerveja que virou bairro

Em 2007, a produção da original fábrica da Carlsberg foi transferida para longe da cidade. Com 33 hectares de Copenhaga na mão, a empresa decidiu criar um ambicioso projecto urbanístico.

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Guiando o grupo pela calçada da fábrica original da Carlsberg, em Copenhaga, Jonas Nielsen anuncia: “Estamos a 36 metros de altitude”. Talvez esperasse uma reacção mais efusiva, mas, verdade seja dita, para as terras planas da Dinamarca, trata-se, de facto, de um número relevante — significava, por exemplo, acesso a água de qualidade. Foi um dos motivos que levou Jacob Christian Jacobsen a estabelecer em 1847 a sua fábrica de cerveja nos arredores de Copenhaga. Chamou-lhe Carlsberg, a partir do nome do seu único filho.

Cento e setenta anos passados, está a nascer no topo desta colina (berg, em dinamarquês) um novo bairro, cujo plano foi desenhado quando a Carlsberg transferiu toda a produção de cerveja desta fábrica — que já não tinha capacidade produtiva para o mercado nacional — para longe da cidade, há sensivelmente dez anos.

Com uma valiosa propriedade de 33 hectares nas mãos, a marca projectou a Carlsberg City District, formada por apartamentos residenciais, escritórios, jardins, um hotel, retalho e zonas culturais e desportivas. Deverá estar concluída em 2025, mas já se tornou uma das zonas mais procuradas para viver, com os preços da habitação consistentemente a subir. Os novos edifícios convivem com as antigas estruturas de tijolo e com a famosa Elephant Gate (Porta dos Elefantes), construída por Carl Jacobsen. Os quatro elefantes — um símbolo ainda hoje visível em algumas das garrafas — representavam os seus filhos.

No passeio pelas instalações da fábrica, o guia fala com paixão sobre a família fundadora da empresa. Apesar da fama dos dinamarqueses — praticantes de hygge — como o povo mais feliz do mundo, a história da Carlsberg ficou marcada pelos conflitos entre pai e filho, com elementos dramáticos dignos de uma adaptação cinematográfica: amor, traição, heranças perdidas e laços de família quebrados.

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Expulso da Carlsberg pelo pai, Carl Jacobsen viajou durante anos pela Europa, saltando de fábrica em fábrica a adquirir conhecimentos de diferentes produtores de cerveja. Regressou à colina com o seu nome, acompanhado pela futura mulher, que tinha conhecido na Escócia — um passo arriscado, já que a anterior escolha amorosa lhe tinha merecido exílio por parte do pai, que não aprovava a união.

O retorno deu-se sem percalços: Ottilia Stegmann, filha de um comerciante, caiu nas boas graças de Jacob Christian Jacobsen, que a via como uma boa influência.

Pai e filho, ambos trabalhadores e ambiciosos, viam o mundo de formas bem diferentes. Jacob Christian Jacobsen — que estava ligado à política, tendo chegado a ser membro do Parlamento — queria que a Carlsberg fosse um exemplo para outras fábricas, tanto pelos valores de trabalho, quanto pelo sucesso financeiro. Quando, em 1883, o professor Emil Christian Hansen descobriu como cultivar a levedura de forma a tornar a produção mais consistente, Jacobsen decidiu partilhar a descoberta com o resto do mundo. Carl queria fazer dinheiro para comprar toda a arte que entendesse. Foi ele quem encomendou a estátua da Pequena Sereia — um símbolo de Copenhaga — ao escultor dinamarquês Edvard Eriksen.

A relação entre os dois voltou a azedar quando Carl foi trabalhar para a fábrica, com uma concessão. A primeira cerveja que criou — uma ale, diferente do estilo ao qual as pessoas estavam habituadas na altura — não teve grande sucesso e por isso Carl foi pedir ao pai permissão para fazer também um lager como o da Carlsberg, de modo a poder financiar-se — e assim comprar mais arte.

O pai recusou, o filho roubou a receita. Pior do que o furto foi o facto de ter cortado o período de estágio da cerveja de nove para seis meses — um sinal de compromisso no nível de qualidade, aos olhos do pai. Surge então um ultimato: “Fazes da minha maneira ou não te vou ter aqui como parte da fábrica”, representa o guia. “Terá soado aproximadamente assim”, aponta.

Carl, filho único, ignorou a ameaça do pai — afinal, “a quem mais poderia deixar a empresa?”. Em 1876, Jacob Christian Jacobsen deserda o filho, deixando toda a sua herança à fundação — ainda hoje sócia maioritária da Carlsberg.

O dinheiro que recebeu como rescisão decide doar por inteiro a cientistas e artistas da cidade, por considerar que era “impuro”. Num episódio dramático, Carl chegou a reunir tudo aquilo que tinha recebido do pai — inclusive o relógio oferecido quando passou nos exames — num carrinho, que deixou no meio da rua, com um bilhete. “Não considero sensato que os meus filhos estejam entre lembranças suas”, escreveu. Antes que a concessão terminasse, construiu uma nova fábrica (a Ny Carlsberg) a 300 metros da original, num ponto estratégico, visível a partir da janela da sala de jantar da fundação, na qual o pai recebia os seus convidados.

Os dois reconciliaram-se em 1887, mesmo antes da morte de Jacob Christian Jacobsen. Com o passar do tempo, a Carlsberg estagnou, ficando à beira da falência. Carl decide então doar a sua empresa à Carlsberg — já a maior produtora de cerveja na Dinamarca, na altura —, sob a condição que fosse ele o dono de tudo. Surge assim a Carlsberg unificada.

O novo bairro de Copenhaga

Ao contrário do que acontece a outras as antigas áreas industriais, o Carlsberg City District — a sensivelmente dois quilómetros e meio do centro da cidade — não se tornou uma zona pobre, nem tão-pouco uma zona super-rica. “Iria reflectir mal sobre a Carlsberg. Tínhamos de fazer algo”, aponta Nielsen.

O plano da marca para criar um novo district (bairro) valeu-lhe o prémio de “Best Master” em 2009, no World Architecture Festival, em Barcelona. Prevê a criação, até 2025, de um bairro criativo, com um balanço entre a arquitectura antiga e contemporânea, milhares de residentes e actividade cultural. Serão demolidos alguns dos edifícios, como a actual sede da empresa, e erguidos outros mais bonitos.

Como é que uma empresa consegue levar avante um plano urbanístico desta dimensão? “Tipicamente é difícil, mas a Carlsberg recebeu aprovação facilmente”, começa por comentar o guia. Primeiro, porque já tinham em ordem todos os planos e estudos do subsolo. Depois, porque estavam interessados em criar um novo bairro em Copenhaga, com directivas que visavam o bem-estar da população. Tinham também muita boa vontade a seu favor: a quantidade de arte que Carl ofereceu à cidade ao longo de anos — tendo inclusive construído um museu de arte, o Ny Carlsberg Glyptotek, perto do centro — e as doações anuais de 220 milhões de coroas dinamarquesas (29,6 milhões de euros) da fundação à ciência fazem a empresa ser bem vista aos olhos da população. Já para não falar do orgulho nacional.

Os planos ficaram fechados em 2008, mas durante anos não se avançou para a construção — devido à crise económica, de acordo com o guia. Nos entretantos, ocuparam a zona com eventos desportivos e artistas convidados — a quem deram carta branca para criar aquilo que entendessem. Um deles teve a ideia de inundar uma das caves para criar o primeiro campeonato subterrâneo de lançamento de pedras sobre a água.

A ideia foi um “autêntico flop”, mas serve hoje para contar uma história divertida. “É algo com que o Carl concordaria totalmente, de certeza: a arte não tem de produzir valor imediato, tem de produzir história”, atira Nielsen.

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