As inflexíveis leis

Gastão Cruz volta a questionar dominantes como a “substância escura” do tempo, ou a força perigosa da imagem. Ao fazê-lo, e ao revisitar presenças como Pessanha ou Sá de Miranda, problematiza, in loco, a sua própria poesia.

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Gastão Cruz pertence a uma estirpe poética que relê criticamente a obra própria Daniel Rocha

Há poetas que perseguem incansável, obsessivamente, modulações confluentes. Palavras e esquemas discursivos revisitados de forma cíclica, ou segundo ritmos erráticos, quebrados por elipses, momentos escuros. Gastão Cruz parece pertencer a essa estirpe poética que relê criticamente a obra própria e, de certa forma, a reescreve em vagas que alteram o corpo aparente sem desfigurarem o seu âmago. Desde o início a sua poesia se fez sob a égide de algumas recorrências fortes. Corpo, água, fogo, tempo, palavra são esteios desta escrita – e reaparecem no mais recente livro de poemas do autor.

Alguns dos mais recentes títulos do poeta haviam elegido elementos concretos: Óxido (Assírio & Alvim, 2015), Fogo (Assírio & Alvim, 2013), Escarpas (Assírio & Alvim, 2010), Crateras (Assírio & Alvim, 2000). Existência, pelo contrário, toma o caminho da abstracção. Talvez não por acaso, assumem peso considerável poemas e textos em prosa de pendor meditativo, memorialístico, ou de alguma forma assinalados por momentos mais marcadamente introspectivos. Um gesto de inquirição que volta a ser possível sintetizar por meio de uma fórmula do próprio poeta: “vida da poesia”, título de um poema do seu livro Campânula (& etc, 1978) e de uma reunião de textos críticos do autor: A Vida da Poesia – Textos Críticos Reunidos (Assírio & Alvim, 2008).

A presença de momentos em prosa nos livros de poesia de Gastão Cruz não é nova. Remonta ao conjunto Referentes, de Poesia 1961-1981 (O Oiro do Dia, 1983), regressando em livros imediatamente subsequentes, como O Pianista (Limiar, 1984) e As Leis do Caos (Assírio & Alvim, 1990). Em Existência, esses textos em prosa adquirem, quase exclusivamente, uma feição expositiva, de elucidação, ou comentário. São ocasiões em que o poeta discorre sobre alguns dos focos de maior intensidade da sua construção poética: o lastro determinante de Camilo Pessanha (Jardim Exíguo); o tempo enquanto dimensão totalizadora, mas também na sua índole “civil”, próxima dos calendários, dos ritmos humanos, das recorrências do quotidiano (Sair do Verão); a crucial interacção entre técnica, musicalidade e a intemporalidade de certas noções fundamentais para a poética de Gastão Cruz (Uma Cortina de Água). Mas há também há poemas que ensaiam gestos de âmbito semelhante. É o caso de Sobre a Morte Percutiva, que reflecte de modo explícito sobre o primeiro livro do poeta, cujo título comparece no nome deste poema – “Não sei por que razão a morte/foi um tema dos meus dezoito anos// era depois da morte de alguns vivos/ vistos na solidão dos seus sentidos” (p.47).

Uma das dominantes de Existência é a tematização do sono e do sonho. Uma díade com forte implantação na poesia de Gastão Cruz – “O sono é/o sonho” lia-se em O Pianista. Abundante na sua produção – por exemplo, num poema de Órgão de Luzes (& etc, 1981) chamado O Caos do Sonho: “Estou deitado no sonho não/ perturbes o caos que me constrói” –, essa prevalência assume, em Existência, um carácter mais “narrativo”, integrado numa sintaxe menos torturada do que em ocorrências prévias – “Por medo da insónia adio o sono/ nas noites em que com um golpe frio/ a memória levanta a onda morta/ do irrecuperável: o que adio?// Estou deitado num tempo muito extenso/ entre luz e o escuro, estou perdido/ entre o imaginado e a verdade/ de um mundo sem imagens” (p.17). Num poema de Existência chamado Reconciliações, tudo se constrói através de sucessivas antinomias e sentidos que se afirmam para, em seguida, tomarem direcções opostas – “Dão-se nos sonhos reconciliações/ em lugares blindados// onde não entra nunca a realidade/ e o amor é apenas o desejo// que supomos viver ou ter vivido/ no poço onde jamais pudemos separar// as águas no perdido/ leito do rio que julgámos vivo// das que na curva turva da memória/ correm de novo agora e não nos molham” (p.19, citado na íntegra) Há um pendor elegíaco para o qual contribuem factores como as sonoridades nasais, mas também os efeitos de eco gerados por formas cognatas (“viver”, “vivido”) (como, em Fogo, “não sei responder/ respondo”) e rimas leoninas: “viver”, “ter”; “curva”, turva”. A realização global do poema prolonga, actualiza, completa essas indicações sonoras, rí(t)micas, compondo o sentido de um impossível irreal que o atravessa. O que parece começar por ser índice de protecção, segurança, através da blindagem que o poema atribui ao lugar ilocalizável do sonho, depressa se torna um fechamento avesso. Uma clausura, muito mais do que um abrigo. O terreno inviável do onírico fecha atrás de si o real, as possibilidades de caminhar em solo firme. Esta imersão no domínio imaterial e imprevisível do onírico relaciona-se (neste como noutros poemas do autor) com outro elemento axial para esta poesia: a imagem – apelo constante, e permanente desengano, destas expedições. O sono é um universo de pulsões e clivagens, de uma veracidade instintiva, mas a cada passo tida por ilusória, fantasmática. Uma condição emblematizada com frequência pelo dúbio poderio da imagem – “a vertigem fixa de uma onda/ que veio sobre mim como um castigo/ porque a memória em sonho convertida// se ganha a nitidez clara da pedra/ mata a imagem que verdadeiramente/ não existe exercendo o seu assédio” (p.20) Atente-se, de resto, no reiterado paradoxo de “imagens reais inexistentes” (p.18). Se os qualificativos “reais” e “inexistentes” entram em conflito entre si, a sua referência a “imagens” subtrai qualquer “realidade” a estas instâncias. É uma realidade ameaçada pela “falsidade” da imagem, mas também pela implacável necessidade deste instrumento da psique e da poesia.

A epígrafe que abre Existência, retirada do Fausto, polariza-se em torno do domínio exercido pelo tempo, terminando com uma exortação que exprime o desejo de quebrar esse jugo. As palavras de Goethe – parafraseadas num poema de Existência: “O momento mais belo trará/o fim do tempo” (p.16) – poderiam funcionar como uma das sínteses possíveis desta poesia, tão intensamente presa ao fascínio do tempo. Em grande medida, ela tem sido uma gesta do tempo: “Um sentido de declínio/ um sentido de setembro” (A Doença, Portugália, 1963); “Junho é um mês funesto/ com o céu coberto/ de armas” (Escassez, ed. autor, 1967); “Exausto mês inútil de novembro/ em que tudo soçobra e se desune” (As Aves, Iniciativas Editoriais, 1969); “O mar do fim de maio é uma imagem/ Das janelas estanques mal o vejo/ Sob a humana voz as suas vagas/ confundem-se com as ávidas palavras/ que preenchem mo quarto como um verso” (poema, citado na íntegra, chamado Arte Poética, de Campânula); “Mês sem cor Fevereiro a/ idade lerá/ sobre um longo silêncio a palavra/” (As Pedras Negras, Relógio D’Água, 1995); “Acabou fevereiro e a luz lisa/ de março tomou conta do deixado/ deserto do inverno” (Existência, p.40). Esta poesia, contudo, transcende uma verificação calendarizada do tempo, inquirindo-o em dimensões mais globais – “os astros vão// esquecer-nos e deixarão por fim/ que a luz abandonando a pele há tanto ao cósmico desígnio subjugada// não seja mais a voz outrora já/ escutada/ dentro do alto forno que nos forjou a cara” (p.12). Agente do extermínio, o tempo é uma das perseguições mais consolidadas em Gastão Cruz – “a substância do tempo a que daremos/ o nome de passado// porém não há passado/ fora do tempo só existe a vida/ uma luz imortal que o tempo mata” (p.22).

Em Existência, Gastão Cruz revisita figuras tutelares na sua poesia, como as de Camilo Pesanha, no já citado Jardim Exíguo – “Girassóis arrancados e lançados no caminho, ‘insectos de asas magníficas’, ‘quebradas por algum vento’” (p.31) –, ou Sá de Miranda – “aves em breve com o sol caídas/antes do tempo certo já seguindo/ as inflexíveis leis do poema antigo” (p.33) –, mas também presenças “temáticas” nucleares na sua poesia – “Se palavras gerais tais como corpo/ desistem do sentido que lhes demos/ e julgámos eterno// somos o labirinto onde o sangue abriu túneis/ que foram esvaziados quando a beleza/ nos traiu” (p.14). Em títulos mais recentes de Gastão Cruz, tem sido crescentemente explícito este modo de reflectir acerca da sua própria poesia – “a poesia/ é uma forma de racionalismo”, lia-se em Escarpas. Em Existência, essa propensão encontra, porventura, o seu expoente em Uma Cortina de Água: “A minha aproximação de poetas como Sá de Miranda, Bernardim, Camões ou alguns românticos ingleses, ou Baudelaire, ou Camilo Pessanha, relaciona-se com a convicção de que existe um modo romântico intemporal de perceber o mundo e que essa percepção em nada impede, antes determina, um fortíssimo sentido de composição do poema.” (p.49)

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