O amor acontece atrás das grades

Vera e Mónica conheceram-se no Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo, em Matosinhos, e, já cá fora, falam em casar-se e em ter uma criança.

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Mónica e Vera vivem juntas desde Janeiro de 2016 Paulo Pimenta
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Conheceram-se na prisão Paulo Pimenta

Quando cruzou as portas metálicas do Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo, em Matosinhos, Mónica nunca pensou que iria apaixonar-se. Queria que o mundo inteiro fosse para o Inferno. Estava a ressacar. Tivera um bebé e perdera-o no labirinto da protecção de crianças.

A primeira vez que falaram? Condenada a oito anos e meio de prisão por roubo, Mónica recebeu ordens para mudar de ala. Na nova ala, nem uma cela livre. Tinha de ficar numa camarata. “Ó menina, por amor de Deus”, pediu à guarda. “Eu tenho andado tão direitinha. Vou chegar lá e vou andar à porrada.” O lamento continuou pelos corredores entrecortados por grades até entrarem na camarata. Vera ouviu-o e lembrou-se de uma rapariga que estava sozinha numa cela e queria vir para ali, para ao pé dela e de outras quatro reclusas. Poderia trocar com Mónica? Trocou.

A primeira vez que se falaram? Vera e outra reclusa tinham ido à biblioteca e regressado à ala uns minutos antes da abertura de celas. As guardas acharam que não se justificava fechá-las. Deixaram-nas ir para o pátio, apanhar sol. Do pátio, via-se Mónica dentro da cela, sentada, a ler um livro. Vera assomou à janela. “Arranjas-me um cigarro? À hora do jantar, dou-te.” Mónica anuiu.

A Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais não tem dados sobre casais que se formam atrás das grades, nem sobre reclusos que se casam uns com os outros. E o afecto e a sexualidade intramuros chamam pouco a atenção dos cientistas sociais. Nas 40 entrevistas que Rita Pinto fez para a tese de mestrado A influência das visitas íntimas na vivência de reclusão feminina, defendida em 2015 na Universidade do Porto, surgiram referências à presença crescente de relações entre pessoas do mesmo sexo. A tese de mestrado Homens “verdadeiros” não fazem sexo na prisão: vivências da sexualidade na reclusão, que Ricardo Silva defendeu volvido um ano na mesma universidade, indicia que são frequentes numa prisão masculina.

Nem Mónica, agora com 31 anos, nem Vera, com 33, alguma vez se entretiveram a tecer teorias sobre o assunto. Nada parecia ligá-las. Vera, lésbica assumidíssima, fora condenada a cinco meses de prisão por conduzir sem carta. Tivera uma infância difícil, deixara a escola antes de completar o 6.º ano e pouco mais fazia do que trabalhar. “Trabalhei primeiro como operária, depois fui empregada de balcão ou de mesa, até que mostrei capacidades para trabalhar na cozinha e é lá que estou.” Mónica sempre tivera relações heterossexuais e nunca trabalhara. “Antes de ir presa, era consumir drogas e vida louca.”

Se lhe perguntarem como tudo começou, Vera dirá: “Ela não ia com a minha cara e eu não ia com a cara dela. Ela e outra dividiam o café. Cada vez que eu as via junto à máquina de café, dizia: ‘Deixa provar para ver se não tem veneno’.” Certo domingo, depois da missa, Vera fez mais uma das suas piadas e Mónica reagiu: “Olha, eu não sou uma das meninas com quem estás habituada a andar.” Se lhe perguntarem como tudo se desenrolou, Mónica dirá: “Ela tinha o grupinho dela e eu tinha o meu. A gente ia para o pátio jogar aos jogos da nossa infância. Muito jogámos à sueca. Não se podia fazer apostas, mas a gente fazia. Apostava tabaco, café e bolo.”

Falta de privacidade

Estavam para ali, cada uma com a sua solidão, a sua carência, a sua culpa. Pouco a pouco, algo despontou. “Havia algo que me dizia para seguir em frente”, recorda Vera. “Olhava para a Mónica e era aquela segurança que se calhar eu não tinha.” Mónica rendia-se ao seu sentido de humor, à sua dedicação. “Deixei-me levar e acho que foi a melhor coisa que fiz. Se hoje estou cá fora, tenho o meu trabalho, estou direitinha, muito lhe devo.” Trabalha numa empresa de limpeza. “Eu hoje penso assim: eu trabalho o mês inteiro para ganhar o salário mínimo, vem uma maluca, como eu era na altura, rouba-me o ordenado e depois?”

O sistema prisional não anula o direito à sexualidade. Escasseiam, porém, momentos de privacidade. Mónica e Vera aproveitavam todas as hipóteses para estar juntas. As guardas abriam as portas às 8h. Vera precipitava-se para a cela de Mónica. Desejavam bom dia uma à outra e seguiam para o pequeno-almoço. Havendo trabalho, iam para as oficinas, uma punha fechos, outra cosia sapatos. Terminado o trabalho, tornavam às celas. As portas estavam abertas entre as 11h45 e as 12h. Tinham 15 minutos de privacidade antes de almoçar. Voltavam a trabalhar, eram fechadas nas celas, tinham alguma actividade ou deixavam-se estar no pátio. As portas tornavam a ficar destrancadas entre as 17h30 e as 18h. Era o momento ideal para namorar. Ainda jantavam juntas. As portas ainda ficavam abertas entre as 18h45 e as 19h, altura em que tinham todas de recolher às celas das quais só podiam sair às 8h do dia seguinte.

Se lhes perguntarem se conseguiam ter uma vida sexual naquela meia hora, as duas rir-se-ão. “Até menos”, diz Vera. “Tínhamos sempre aquela coisa que entrasse alguém”, diz Mónica. “A porta não podia estar fechada”, sublinha Vera. “As guardas andam para trás e para a frente, as nossas colegas também”, torna Mónica. “Um cobertor por cima e acabou”, esclarece Vera. “Tivemos cada cena. Lembras-te aquela vez que passou uma guarda e disse: ‘Menina, esta porta não é para estar fechada!’”

Uma saiu primeiro

Quando Mónica contou o que se passava a uma das amigas mais próximas, a outra desvalorizou: “Isso passa-te. Ela vai embora e tu mudas. Isso não é a tua onda.” Quem reagiu pior foi a irmã: “Então agora estás virada!” Até as guardas revelaram dúvidas. Uma delas avisou-a: “Não te iludas rapariga.” No dia 13 de Julho de 2015, mal virou costas à prisão, Vera tirou fotocópia do cartão do cidadão e fotografias tipo passe, meteu tudo num envelope e mandou para a prisão. Mónica tratou logo de pedir o formulário de visitante. No sábado, estavam juntas, no parlatório. Quando Mónica saiu, a 4 de Janeiro de 2016, Vera esperava-a.

Têm falado muito em unir-se pelo casamento e em ter uma criança. “A Vera quer muito um bebé e eu também quero, mas é complicado”, revela Mónica. “Tem de ser agora, depois vais entrar na menopausa”, brinca Vera. “A nossa vida não é fácil”, encolhe-se Mónica.

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