Só a Fertagus substitui maquinistas após colhida de pessoas na via férrea

Gabinete de Investigação e de Segurança de Acidentes Ferroviários põe em causa capacidade dos maquinistas se auto-avaliarem para prosseguirem viagem após acidente.

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Helder Olino

A Fertagus é a única operadora ferroviária que tem no seu protocolo a substituição imediata de um maquinista após o seu comboio ter colhido uma pessoa na linha. O objectivo é evitar que o ferroviário continue a conduzir o comboio imediatamente depois de uma experiência traumática que poderá afectar a sua aptidão psicológica para essa tarefa.

Esta prática não é integralmente seguida pela CP, apesar de uma recomendação do então Gabinete de Investigação e de Segurança de Acidentes Ferroviários, agora designado Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e Acidentes Ferroviários (GPIAAF), que insta a empresa a “estudar o impacto para a segurança dos riscos que o efeito das ocorrências envolvendo colhidas de pessoas pode ter na saúde das tripulações dos seus comboios, quando estas prosseguem com o seu serviço”. Esta recomendação consta de um relatório a um acidente numa passagem de nível em Estômbar (Algarve). Uma pessoa foi trucidada por um comboio de passageiros. Depois de recolhido o corpo, e de as autoridades terem dado o local como desimpedido, o maquinista seguiu viagem.

Segundo o último relatório do Instituto da Mobilidade e dos Transportes: de 2006 a 2015 — em apenas dez anos, portanto —, 801 pessoas foram colhidas por comboios. Nuns casos suicídios, noutros acidentes. Uma equipa do Laboratório de Reabilitação Psicossocial da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto está a estudar o impacto destas situações em revisores e maquinistas. Tal como o PÚBLICO deu conta há semanas, entre os 296 revisores e assistentes comerciais entrevistados nesse projecto, no âmbito de um protocolo estabelecido com o Sindicato Ferroviário da Revisão Comercial Itinerante, cerca de 32% revelaram sintomas de stress pós-traumático. Lá para o final do ano, a mesma equipa conta ter pronto o inquérito que está a ser feito aos maquinistas — 340. A investigação científica mundial aponta para uma taxa de stress pós-traumático entre os maquinistas entre os 8% e os 14%.

Na sequência destes dados fomos ver quais as práticas das empresas. Questionada pelo PÚBLICO, a CP diz que “não tem registos de problemas de segurança na operação dos comboios, após colhidas de pessoas, quando as tripulações continuam com os seus serviços”. Mas, cautelarmente, tem elencado alguns procedimentos “que devem ser desencadeados, sempre que ocorrem colhidas na via-férrea envolvendo pessoas”.

Entre eles destaca-se a substituição da tripulação, “sempre que isso seja solicitado pelos próprios às respectivas hierarquias” — o que pressupõe que o trabalhador está apto a fazer uma auto-avaliação — ou sempre que as próprias hierarquias o entendam necessário.

Se o maquinista pedir para ser substituído, “e isso não seja materialmente possível no local onde se verificou o acidente, a empresa providencia a presença de um seu agente na cabina de condução durante o trajecto que o maquinista tenha de percorrer até ser substituído”, refere a mesma fonte oficial da CP.

Além destas medidas a empresa obriga a que, num prazo de 15 dias, seja feito um exame especializado à saúde mental dos trabalhadores envolvidos em ocorrências com colhidas de pessoas.

Estas preocupações abrangem também os revisores. Se é certo que os maquinistas são confrontados com as imagens do acidente sem o poderem evitar (os comboios necessitam de centenas de metros para poderem parar em emergência), compete ao revisor sair do comboio e ser confrontado com as suas consequências, prestar ajuda se houver sobreviventes e alertar as autoridades.

A Medway (antiga CP Carga), que explora comboios de mercadorias, diz que “sempre que alguém é colhido, a empresa oferece à tripulação a possibilidade de ser rendida". Ou seja, cabe à tripulação a decisão de querer continuar, ou não, a marcha do comboio. "Caso o não queira fazer, é substituída por outra tripulação." Na resposta ao PÚBLICO, faz ainda saber que, “para além disso, a empresa oferece apoio psicológico a quem o pretender”.

A substituição da tripulação está facilitada na Fertagus, cuja operação se desenvolve só entre Lisboa e Setúbal e numa linha que está vedada, o que é dissuasor para quem pretende suicidar-se.

Já as outras empresas, que operam em todo o território, nem sempre conseguem substituir as tripulações, o que impele os trabalhadores a sentirem-se no dever de prosseguir viagem, subestimando a sua aptidão psicológica para a condução.

Tratando-se de comboios de passageiros, os maquinistas sentem-se responsáveis pelo tempo que estes estão a perder por o comboio estar parado e com as repercussões que isso vai ter no restante tráfego ferroviário e nos passageiros de outros comboios. Por isso, sentem-se compelidos a responder que estão bem e a prosseguirem com a condução.

O PÚBLICO contactou a Takargo, transportadora ferroviária do grupo Mota Engil, mas não obteve resposta.

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