Ouvem-se tambores nas canções essenciais de Camille

Ao quinto álbum, Camille acrescenta mais um capítulo a uma discografia cada vez mais preciosa no cenário pop global. Ouï é um manifesto pela busca de harmonia, da ligação à terra ao desejo de paz, passando pela democracia participativa.

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Patrick Messina

Há um mês, na quarta e última noite da apresentação de Ouï na sala parisiense La Cigalle, Camille distribuiu fotocópias da letra de La complainte de la butte e convidou o público a dirigir-se para a rua. A canção escrita originalmente por Jean Renoir para o seu filme French Cancan, onde é estreada pela personagem Esther Georges, cantora novata acabada de aterra numa importante sala de espectáculos, versa a subida para Montmartre. Foi essa mesma subida que Camille fez com uma multidão a segui-la, qual flautista de Hamelin (mas sem ratos na sua cauda), enquanto entoava a canção popularizada por Mouloudji nos anos 50 e desde então elevada a clássico da chanson. Após cinco minutos de escalada pela Rue des Martyrs, o concerto terminava com o público a encher uma pequena praça uns metros mais acima, enquanto La complainte de la butte se escutava em loop.

Era a resposta tardia a um pedido feito duas noites antes, quando no final do concerto “houve um senhor que gritou ‘Vamos para a rua’ porque sabia que já o tinha feito noutras ocasiões”, conta a cantora ao Ípsilon. Basta passear uns minutos pelo YouTube para ver Camille a cantar numa ponte de Paris (Pont des Arts) ou noutro local imprevisto rodeada de uma multidão. “Não o fiz naquela noite, mas disse a mim mesma que o faria na última noite, encorajada por ele.”

Seeds
Les loups

Concluía-se assim uma série de espectáculos na semana de lançamento de Ouï, quinto álbum de estúdio da cantora francesa, e que reforça o seu lugar singular na pop actual. Em disco, mais ainda ao vivo, as canções de Camille são feitas de uma certa energia rude e selvagem, assentes numa inventiva harmonização vocal e numa forte base rítmica, a que se juntam pianos e teclados tocados de forma minimalista. Tudo isto seria apenas curioso se os recursos melódicos e vocais de Camille não esgotassem sem dificuldade qualquer catálogo de louvores.

Em palco, tudo responde a uma precisa coreografia em que recursos mínimos (um lenço azul e desenho de luzes) fornecem um sem-fim de soluções – o lenço esticado serve para impedir Camille de avançar em My man is married but not to me, para a cobrir totalmente nos primeiros segundos de Sous le sable ou para projectar a sua sombra enquanto estabelece um diálogo dançado com o seu coro durante Paris. Mas o preciosismo com que o espectáculo decorre nunca é limitador – basta ver, aliás, que o teclista Clément Ducol, de costas para a cantora boa parte do tempo, tem instalado num piano esventrado um espelho retrovisor para responder aos comandos de uma Camille que navega pelas músicas com a liberdade suficiente para seguir por desvios imprevistos.

Desde o segundo álbum, Le Fil, que Camille pensa cada disco a partir de uma exploração sonora concreta. Em Le Fil, o fio a que alude o título era um bordão vocal que atravessava todas as canções, com toda a construção dos temas feita a partir de melodias de voz sobrepostas; em Music Hole o caminho seguido foi o da música negra norte-americana; em Ilo Veyou foi a vez de compor com instrumentos de cordas no horizonte. “Os discos partem muitas vezes dos sons ou dos instrumentos que tenho vontade de explorar e em torno dos quais construo um ambiente – é esse ambiente que vai influenciar a composição e a escolha das canções”, conta.

Agora, passados seis longos anos sobre Ilo Veyou – mas em que houve o álbum ao vivo Ilo Lympia –, o gatilho foram os tambores. A essa exploração sonora Camille juntou um coro rítmico e um coro lírico – em disco ambos são assumidos por si –, juntando de forma mais pronunciada do que nunca os seus extremos de construção sobre ritmos e de rasgos que ecoam uma formação clássica, mas em que tudo se junta na natureza desavergonhadamente pop que sempre tem sido a sua. A estes dois factores – tambores e vozes – juntou depois um sintetizador moog.

“Foi o som grave dos tambores que me atraiu”, explica. “A minha voz é muito alta e por isso sinto-me atraída pelo contrário. Gosto muito de contrabaixo e dos sons da terra – é isso que o som do tambor me evoca. E sinto um apelo da terra mais forte do que nunca. Ela chama-me a redescobrir as árvores e os animais, a compreender como se desenvolve o ciclo da vida. O tambor é para mim como se a terra falasse e acho que isso convida à reunião dos homens. É como um convite para fazermos uma ronda e dançarmos, claro.”

Todo esse apelo telúrico está presente nas questões fulcrais de Ouï: a alimentação, a terra, o movimento Nuit Debout, “que teve lugar em França na Primavera de 2016 e era um ajuntamento democrático que convidava a repensar a política e a procurar algo novo naquilo que dizem as pessoas e não naquilo que contam os lobbies e o poder político”. Ou seja, tudo isto unido por uma busca de harmonia e procura por uma vida menos dispersa e ligada aos prazeres essenciais. “No disco fala-se muito da alimentação, dos elementos, do mar, da areia, do sol, da terra, das coisas simples como o título do disco, mas que para mim são fundamentais e convidam à redescoberta. Na poesia podemos sempre redescobrir, mesmo as coisas mais simples.”

Palavra do prazer

A 7 de Novembro de 1966, John Lennon foi até à Indica Gallery, em Londres, assistir à pré-inauguração da exposição Unfinished Paintings, de uma jovem artista que lhe tinha sido recomendada por alguns amigos. Na cave da livraria Indica, John havia de ficar intrigado por uma escadas que permitiam ascender a uma lupa, através da qual se percebiam as três pequenas letras que estavam inscritas no tecto: yes. A história é famosa e documenta uma das razões que empurrou Lennon para naquela noite conhecer Yoko Ono, autora da exposição. Antes de ter lançado Ouï, Camille nunca tinha ouvido o relato de tal encontro, mas desde então esse momento longínquo no tempo passou a cruzar-se com ela amiúde.

A cantora reconhece-se nessa ideia que cativou o então Beatle de, após a pequena escalada que lhe era proposta, o esforço ser recompensado por uma palavra com uma carga positiva. “É a palavra do prazer, de quando se está feliz”, reconhece. Prefere, ainda assim, pensar o seu Ouï com um significado de “protesto maximal”. “Hoje em dia somos muito solicitados por muita informação, muitos estímulos que, na minha opinião, não vão necessariamente no sentido da nossa liberdade e sim no sentido de uma saturação da nossa imaginação. Uso muito o ‘não’ em resposta a essas coisas, mas não tenho vontade de me colocar num estado de resistência permanente e então digo ‘sim’ a outras. Digo ‘sim’ à escuta dos outros, à poesia, à invenção, àquilo que é descomplicado, que não custa nada e que me parece essencial como cantar, dançar, comer alimentos simples, ver o mar e me permitem aceder à paz interior. E, por consequência, à paz, que me parece ser o primeiro trabalho dos homens.”

“Si la cuisine vient du coeur / la musique vient de l’estomac” canta Camille em Je ne mâche pas mes mots. E, na verdade, até pela forma como ergue as canções a partir da voz, a sua música parece partir sempre daquilo que o corpo tem vontade de dizer. “O corpo é a nossa antena, é o nosso idioma, é ele que nos fala todo o dia, que nos indica a temperatura, as emoções, a fadiga, a alegria e nos indica se alguma coisa vai mal”, responde. “Presto-lhe muita atenção, é um guia e é o meu instrumento musical. E talvez eu seja o seu instrumento também.”

Passados seis anos sobre Ilo Veyou, tempo de que precisava “para escrever, dançar, reflectir, passar tempo com os filhos, amar, jardinar e fazer nada”, concretiza, Ouï apenas desilude na sua extensão. São 32 minutos que sabem injustamente a pouco numa discografia que se tornou já um bem precioso da música francesa, mas, mais do que isso, uma obra rara e de uma riqueza transbordante e sem igual na pop global. Da percussiva Seeds, paralela ao percurso de Feist, e do festim popular de Les loups, à mais desbragada e tangente a r&b e soul em estado primitivo de Twix e à belíssima balada soprada Langue, nenhum tema dá descanso ao maravilhamento constante da música de Camille. Continua apenas a faltar que o mundo para lá da francofonia a descubra por fim. Mesmo que isso lhe possa roubar algum tempo de dança e jardinagem.

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