Um governo intermitente

O conveniente desaparecimento do chefe do Governo é toda uma metáfora da essência deste Governo.

1. O roubo na base militar de Tancos é, do ponto de vista da segurança interna, da segurança externa e da confiança nas instituições, um acontecimento muito grave. Tanto mais grave quanto ele não representa uma incidência ocasional ou conjuntural, mas corresponde a um enfraquecimento substancial do Estado e das suas funções de segurança e protecção. Um enfraquecimento, registe-se, claramente resultante de escolhas políticas – basicamente orçamentais – assumidas pelo actual Governo. Não menos sério é ainda o modo como, depois de detectado o roubo, o Governo e a chefia militar reagiram. É, por isso, importante analisar as várias componentes dessa reacção (ou até da ausência de reacção) para se perceber o grau de desagregação institucional a que se chegou.

2. Começa por não se compreender como, uma vez conhecida das autoridades uma ocorrência deste calibre, não se actuou imediatamente em sede de controlo de fronteiras. Ou, pelo menos, não se percebe que ninguém tenha ainda explicado por que razão uma reposição de controlos fronteiriços não era adequada. E não se adiantou também se havia ou não razão para elevar o nível de alerta de segurança, por forma a prevenir um eventual uso dos explosivos ou munições roubados.

3. Merecem crítica severa as declarações do Chefe do Estado Maior do Exército, em particular a afirmação de que estava convicto de que haveria conivência criminosa no interior das Forças Armadas. Não está em causa a convicção do chefe militar, nem está em causa a plausibilidade da convicção. É de facto possível, mesmo provável, que tenha intercorrido alguma cumplicidade interna. Mas uma afirmação destas, feita nesta fase e sem qualquer possibilidade de concretização, lança uma suspeita generalizada sobre os militares que trabalham na base e cria um ambiente interno de desconfiança e sedição. Ambiente malsão que, de resto, é depois favorecido pela “exoneração” bizarra de cinco titulares de postos de comando. Bizarra, porque é anunciada como exoneração; de seguida, é apresentada como exoneração “temporária”. O Presidente da República fala, por sua vez, em “medidas cautelares”. Se é temporária e cautelar, por que se determina a exoneração e não, como pareceria curial, a suspensão? Será apenas e só para garantir e alardear o efeito mediático da palavra “exoneração”?  Mas a questão principal é tão-somente a inicial: como pode um chefe militar lançar publicamente a suspeita de comportamento criminoso sobre a generalidade dos seus subordinados hierárquicos?

 4. Já o ministro começa, e bem, por dizer que assume a responsabilidade política (o que quer que isso seja no caso vertente) e que o roubo – a que eufemisticamente e por um conveniente “juridismo” chama “furto” – é grave. Mas depois, e em clara contramão com esta atitude, tudo faz para relativizar, normalizar, banalizar o sucedido. Em especial, esforça-se – no que há-de ser seguido pelo Presidente da República – por dar exemplos internacionais de roubos análogos no passado recente. Ora, este argumento, em vez de tornar mais tragável ou até desculpável o roubo de Tancos, torna-o, isso sim, totalmente indesculpável. Se em período de grave ameaça terrorista, o Ministério da Defesa e as autoridades militares têm conhecimento de que houve roubos noutras instalações na Europa ou em países da NATO, é por demais óbvio que têm de reforçar (e não de contemporizar ou negligenciar) a segurança e protecção das instalações de armazenamento e guarda de material bélico. Como pode ter-se mantido uma segurança com contornos amadores em Tancos, quando se sabia que tinha havido roubos em instalações de índole similar?

 5. Do conjunto das declarações do ministro e do chefe militar fica também uma outra certeza: havia plena consciência das debilidades da situação de segurança em Tancos. Com efeito, se existia um conjunto de acções preparadas (e até orçamentadas) para reparar a vedação e para reactivar o circuito de videovigilância, então havia a ciência dos riscos que corria a instalação em causa. Se à consciência da situação juntarmos a informação sobre os tais episódios de roubo internacional, é injustificável que não se tenha antecipado aquela intervenção ou encontrado uma solução alternativa (como, por exemplo, a vigilância em permanência).      

6. Como se isto tudo não bastasse, a imprensa espanhola teve acesso e publicou a uma lista completa do material roubado. O que naturalmente deixa as autoridades portuguesas em maus lençóis, porque depois de uma terrível falha de segurança e em pleno processo de investigação criminal, não são sequer capazes de garantir o sigilo de informação confidencial e altamente sensível.

 7. Soma-se a tudo isto, a mais sonora das ausências, a do primeiro-ministro. Diante de um roubo desta natureza e do mal que ele pode fazer à instituição militar, o silêncio de Costa e o seu refúgio em férias são insustentáveis e só podem ser deplorados. Se não houvesse nada mais importante – e há e muito –, as Forças Armadas portuguesas precisariam e mereceriam sempre, em tempo oportuno (agora já transcorrido), uma palavra de confiança, de reforço e de reposição da autoridade. Mas está visto que a proverbial habilidade do primeiro-ministro está orientada para a popularidade: seja com sondagens e focus groups pós-tragédia, seja com refúgios convenientes.

8. O conveniente desaparecimento do chefe do Governo é toda uma metáfora da essência deste Governo. Olhando para a quebra da cadeia de comando e de resposta que grassa na Administração Interna e que ficou visível na tragédia de Pedrógão Grande; olhando para a “normalidade” com que o ministro da Educação encara a fraude a um exame; olhando para a imperdoável falha de Tancos, vê-se – e já só se vê – um Governo intermitente. Funciona de vez em quando; lampeja de quando em vez.

SIM. Simone Veil. Morreu uma mulher excepcional na defesa intransigente da paz e da reconciliação, da igualdade das mulheres e do ideal europeu. Carisma, inteligência, dignidade.

NÃO. Ministro da Educação. A ligeireza com que trata a fraude a um exame revela mais uma falência do Estado. E põe gravemente em causa a igualdade de tratamento. Tudo passou a ser normal, até a fraude.

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