Ana Carolina: “A música foi mais urgente na minha vida do que a escrita”

A par dos concertos nos coliseus, esta sexta-feira em Lisboa e domingo no Porto, Ana Carolina lançou em Portugal o seu primeiro livro, Ruído Branco. Uma outra forma de conhecer a sua veia criativa.

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Ana Carolina, entre a música e a escrita LEO AVERSA

Já correu palcos com um espectáculo chamado Sucessos (2010-2013) e agora traz a Portugal um outro denominado Grandes Sucessos, estreado em 2016 no Brasil e que agora subirá aos palcos dos coliseus: esta sexta-feira em Lisboa e domingo no Porto (ambos às 22h). Mas Ana Carolina, cantora e compositora brasileira com presença assídua (e uma legião de fãs) nestas paragens, é mais do que uma soma de canções platinadas pela indústria fonográfica. E é isso que ela mostra, de algum modo, com a publicação do seu primeiro livro, Ruído Branco, em resposta a um desafio da editora Planeta no Brasil e há dias lançado em Lisboa, na Fnac Chiado, pela Planeta Manuscrito. Na capa, uma fotografia dela com ambas as mãos sobre a boca, numa simulação de silêncio. Mas o ruído branco do título extrapola essa imagem. “Ana Carolina conhece bem o indizível, o silêncio, o ruído branco”, escreve José Luís Peixoto no prefácio.

Exposição autobiográfica

Se Grandes Sucessos não precisa de se explicado, pois Ana Carolina soma tantos, espalhados pelos seus catorze discos (de estúdio, ao vivo e colectâneas), já o livro Ruído Branco necessita de explicação. Perguntaram-lhe, da editora, se não teria alguma coisa escrita guardada, talvez numa caixa, que pudesse ser publicada em livro. E ela, como explicou perante as muitas pessoas que assistiram ao lançamento, ficou “meio assustada” com a ideia. “Na verdade, eu fiz letras até ao quinto período, mas tive de abandonar letras para fazer o meu primeiro disco. A música foi muito mais urgente na minha vida do que a escrita.” Mas a escrita sempre esteve lá, nela, desde cedo, e o livro inclui, a par de fotografias, pensamentos soltos, textos poéticos, letras musicadas de canções ainda por gravar, reproduções a cores de pinturas suas (porque ela também pinta), a reprodução fac-similada de um “Caderninho” com “poesias escritas entre 11 e 12 anos”. Foi mesmo um caderno, feito a partir de um livro real: ela colou folhas escritas por ela nas folhas de um livro impresso, por cima das folhas originais e fazendo desse livro uma obra sua. Isso foi o início. Mas depois há textos poéticos autobiográficos onde ela se expõe mais, cruzando lembranças de viagens (Paris, Amesterdão, Florença) ou de experiências íntimas (os pais, um acidente, sexo e êxtase). “Vou pela rua em passos rápidos/ A criança perdida que fui me persegue”, escreve em “Andaime” (pág. 30). Mas a narrativa não é linear, como ela explica: a personagem de um lugar pode surgir misturada na história de outro lugar, o mesmo sucederá com os nomes. Ou experiências. Reais, mas sem correspondência exacta.

“Gosto de coisas esquisitas”

“Eu gosto de fazer coisas esquisitas. Tenho muitas coisas esquisitas no livro”, diz Ana Carolina. Há, por exemplo, apontamentos breves em bocados de papel, talvez post-its ou fragmentos de toalha de restaurante. Como este: “Minha dor é seca/ Choro pra dentro/ Meu choro é infiltração.” Ou este: “Meu problema é não te resolver.”

Alguém lhe perguntou se ela se escondia, de algum modo, atrás das letras e se o livro, expondo-a, não teria sido uma forma de mostrar um pouco de si. A resposta foi clara: “Um cantor popular tem de criar uma persona pública. E se ele não a criar, o público cria essa persona para ele, quer queira quer não. As pessoas dizem: vou no show da Ana Carolina porque ela é radical, ou porque fala de política, ou porque gosto da música tal. As coisas que escrevi nesse caderninho, com a máquina de escrever e com tamanha inocência, são mais fluídas, acho eu, porque ninguém ia ler. Eu só mostrei pra minha mãe, aliás ela é que o guardou. Hoje, quando eu tive de escrever o livro, o meu grande problema era que eu não interferisse em coisas que podiam vir levemente e fluídas como as do caderninho. Textos em que senti que estava interferindo, joguei fora, tirei.” Ana Carolina prefere que as ideias a atravessem sem interferências. “É o que eu faço há dezassete anos na música e posso dizer tranquilamente que o faço com facilidade, porque aprendi a deixar a música me atravessar, ainda é uma dificuldade com a escrita.” O objectivo é conseguir escrever como uma criança: deixar fluir.

José Luís Peixoto e o poema

Ana Carolina diz que metade do livro foi escrito depois de lhe proporem escrevê-lo e a outra metade tinha-a guardada, dispersa entre papéis. A edição portuguesa do livro tem prefácio de José Luís Peixoto (que antecede o prefácio da edição brasileira, do também escritor Fabrício Carpinejar). O mote foi dado pelo próprio livro, porque logo no primeiro texto, intitulado “Não leiam”, todo ele escrito na negativa mas verdadeiro, como ela diz, Ana Carolina escreve: “Não nasci em Montreux/ Não me chamo Nicolas Behr/ (…) Nunca atirei uma pedra num lago calmo/ José Luís Peixoto nunca fez uma poesia pra mim.” Etc. Esta última linha foi mostrada ao escritor que, por já admirar o trabalho de Ana Carolina como cantora, aceitou fazer o prefácio, esteve na Fnac Chiado a apresentar o livro e, ali mesmo, leu o tal poema que não existia e passou a existir porque ele o escreveu, intitulando-o “Para Ana Carolina”. A transcrição, feita a partir de uma gravação áudio no local, não segue a forma de poema mas de texto corrido, tentando aproximar na escrita a fonética da leitura pelo autor. Aqui vai:

“Este poema não existe. Sempre que o quis escrever acabei por me perder em jardins. Estas palavras fugiam à minha frente, via-as ao longe e quando chegava lá elas já estavam noutro lado, mais distante e inalcançável. Estas palavras eram o horizonte. Eu analisava o silêncio, sem elas. Imaginava formas nesse silêncio transparente, esculpia sílabas no ar: A-na Ca-ro-li-na. Desfolhava sílabas como pétalas. Mas essa ilusão desfazia-se num sopro. Eu estava na minha vida e tu estavas na tua. Eu estava no meu silêncio e tu estavas no teu. Eu estava nas minhas palavras e tu estavas na tua voz. Então acreditei que, como este poema, Ana Carolina não existia. Talvez fosse apenas uma miragem, um verso que pode ser escrito, uma metáfora para falar da Lua ou de uma possibilidade que nunca se chegou a viver. Mas depois olhei para o lado e estavas aqui, com todas as sílabas: A-na Ca-ro-li-na. Entreguei-te este poema. Afinal, existes. Afinal, o poema existe. Existimos neste tempo. Fomos capazes de escrevê-lo.”

No final, deu-lhe a folha de papel onde o poema estava escrito. E abraçaram-se em mútuo reconhecimento, com toda a gente a aplaudir. O livro ficou, desactualizado, é verdade, porque diz que José Luís Peixoto nunca escreveu um poema para ela e ele escreveu-o agora. Mas essa é mais uma razão para descobrir este outro lado de uma autora que muita gente só conhece dos discos, dos palcos ou só dos êxitos (sobretudo nas novelas). “Eu entreguei-me muito nisso [o livro], está tudo muito na carne, sangue nos olhos, é muito real, muita exposição mesmo. Só consigo escrever sobre coisas que me aconteceram, não adianta. Não tenho ainda maturidade para escrever sobre um indiano que se apaixona…”

“Um show maravilhoso”

Este outro lado, a partir da escrita, das palavras e da poesia do livro, Ana Carolina está a explorá-lo também num outro tipo de espectáculo, paralelo aos que enchem grandes salas. “É um show maravilhoso. Eu não canto nenhum sucesso e todas as canções são escolhidas a partir das poesias. Então, por exemplo, ‘O Silêncio’ [um dos poemas do livro] é lido por uma actriz do Brasil muito bacana, de que eu muito muito, chamada Camila Morgado. Ela lê e logo depois eu começo a cantar Paula e Bebeto [de Milton Nascimento]: ‘Vida vida que amor brincadeira/ Eles amaram de qualquer maneira,/ Qualquer maneira de amor vale a pena’. Todas as músicas têm a ver com o que eu estou dizendo. O Lázaro Ramos lê o ‘Não Leiam’, que é o primeiro poema do livro. Maria Bethânia, que começa o show, diz ‘Rotatória’. E as canções respondem às poesias. É um espectáculo muito interessante, que eu adoraria trazer a Portugal.” 

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