Quando o Santo António apertar, Carnide tem espaço para bailar

Cruzando o centro de Lisboa, da Graça à Madragoa, fomos espreitar os preparativos para a grande noite de 12 de Junho. Longe da confusão, há quem prometa “a melhor sardinha” da cidade aos que visitarem o arraial do Largo do Coreto.

Fotogaleria
Um roteiro por bairros típicos na época dos santos populares em LIsboa Margarida Basto
Fotogaleria
O bairro da Madragoa veste-se a preceito para ver passar o arraial Margarida Basto
Fotogaleria
Ester Costa escreve todos os poemas que acompanham os seus manjericos Margarida Basto
Fotogaleria
Carnide tem tudo a postos para receber o arraial do mês de Junho Margarida Basto
Fotogaleria
Lisboa está com o céu colorido e as grelhas prontas Margarida Basto
Fotogaleria
A freguesia de Carnide está a rigor para o Santo António Margarida Basto
Fotogaleria
Na barraca Há no Barrotes a sardinha já loira Margarida Basto

As barracas estão montadas no Largo da Graça. “Odete das Flores” está sentada num banco, à sombra, e reclama, como todos, que os manjericos estão a sair pouco este ano. Os espanhóis ainda se aproximam, apalpam, retomam o caminho. A vendedora tem feito ginástica em frente às plantas: quer vendê-las, não quer que ninguém lhes chegue e se ponha a tocar nesta e naquela planta. Mas os alongamentos de Odete devem perder-se na tradução para o castelhano — e lá vão os curiosos de palma da mão com cheiro a fresco.

“Odete era o nome da minha primeira namorada, não sei se é viva”, comenta Alberto do outro lado do banco. “Mas não fui eu a tua namorada, de certeza. Este senhor é o Alberto: o garanhão da Graça”, responde a mulher que chama a si a responsabilidade de pôr o largo a cheirar a manjerico. “Olha que gostava mesmo dela”, reclama Alberto.

De manjerico em punho caminhamos menos de um minuto até à Rua da Graça. À porta está Laura, que há 28 anos decidiu, ela mais o marido Jaime, comprar o n.º 91. Furaram os azulejos para pendurarem os retratos de Hermínia Silva, Fernando Maurício, Amália. O espaço que sobrou foi para pregar instrumentos musicais. Esconderam fotografias da família debaixo do acrílico das mesas. “Toda a gente canta aqui o fado”, trauteia um cliente que vai na rua a entrar para o estabelecimento. Laura responde sem olhar: “Olá, meu amigo”.

Precisam de mais que uma taberna para serem felizes no bairro da Graça? “O sonho para mim está mais que preenchido”, responde Laura, esticando o braço e deslizando-o pela tasca, em jeito de fadista.

De dentro da tasca vê-se o eléctrico passar — o 28, à pinha de turistas para cá, à pinha de turistas para lá. E os santos populares, vêem-se? “As pessoas preferem comer na nossa barraca, porque já sabem que quando chegam a Alfama os preços são muito altos. O que as pessoas querem é um sítio sossegado e por aqui a festa é calma”, assegura Laura. “A partir das seis, seis e meia, já tenho sardinha. E normalmente o peixe não passa das onze. Graças a Deus, acaba rápido”.

Foto
Jaime e Laura, proprietários da "Tasca do Jaime" há 28 anos Margarida Basto

O prédio ao lado está desabitado. Dois passos em direcção ao antigo Royal Cine e, em frente, no n.º 69, está Ester Costa a picar os manjericos com os poemas que escreve — “Desculpe, mas só os vendo a partir de amanhã”, responde. Não se insiste mais. Pelo bairro da Graça ainda não há sinal de brasas, nem pão com chouriço. Vamos andar: passar pelo renovado Largo da Graça, descer pela Voz do Operário até a Alfama; dar à perna até ao Castelo e depois Mouraria abaixo; eis a Avenida das marchas, eis o Elevador da Glória que sobe ao Bairro Alto, que se abre na Bica. Vamos andar até à Madragoa.

“Na Madragoa? Já não há tradição”

As varinas da Madragoa já devem ter tudo pronto. “Na Madragoa? Já não há tradição. Nós íamos para a escada da Alice fazer os arcos. Éramos nós que os fazíamos mas agora já não. Só se ouve as rodinhas”, diz Emília da sua varanda do rés-do-chão. “As rodinhas das malas na calçada é que me tiram o sono”. A queixa está apresentada.

“Na altura, fazíamos uma cola para unir os enfeites coloridos aos arcos dos santos populares. Farinha, vinagre e uma pinga de nada de água”, descreve Lurdes, a vizinha do fim da Rua Vicente Borga, na Madragoa. “Os rapazes faziam o esqueleto arredondado em madeira. E nós enfeitávamos os arcos com tiras de papel e com a tal cola horrorosa”, nas palavras de Lurdes, que esfrega as mãos enquanto explica o processo pegajoso.

As histórias continuam na calçada. “Fazíamos flores com alfinetes e púnhamos ao peito para nos darem um tostão e conseguirmos pagar os arcos. Ou fazíamos altares de Santo António e íamos, ali para a Emissora Nacional, pedir umas moedas. Nesse tempo a minha avó ainda vendia de canastra no Bairro Alto”, diz Emília, neta de varina, que se debruça do peitoral para o empedrado.

Foto
Emília Marques, à janela, e Lurdes são netas de varinas Margarida Basto
Foto
Géninha é a proprietária do estabelecimento "A Rosinha" na Madragoa Margarida Basto

A descer todos os santos empurram. Caímos até à Rua da Esperança, na mesma Madragoa das rodinhas, e a mesa está posta e a rua cortada. Meia dúzia de manjericos em pratos de barro e caiem das mesas uns quadrados vermelhos e brancos. “Géninha” está há 17 anos atrás do balcão. “Tudo a postos para os santos. Vamos ter sardinhas, febras, entremeada, chouriço, caracóis e, claro, a música”. Pela Madragoa há sinal de brasas. Mas não cheira a pão com chouriço e ninguém suga caracóis.

Um bailarico familiar longe do centro

E lá longe, tudo pronto? "Em Carnide, os arraiais de Santo António começaram há 50 anos", diz o senhor de boina. Na Rua Neves Costa, que afinal é um largo, Largo do Coreto, João Pereira ajeita o adereço na nuca enquanto atravessa a rua. “As minhas sardinhas? Asso-as à minha porta. E depois fico por casa”. Os 77 anos já não dão para deambular nos bailaricos.

O coreto é a alma da festa. José Carvalho, o veterinário de Carnide, conta que no local do coreto outrora esteve a capela de São Lourenço. Há 11 anos que passa a noite de 12 para 13 de Junho em Carnide. “Aparentemente, aqui nada é diferente dos outros arraiais. Mas este largo é único e as pessoas continuam a vir”.

Carlos Barros tem a barraca Há no Barrotes numa das voltas do coreto há 12 anos. “As minhas sardinhas são de Peniche. As do ano passado estavam boas. Mas espere pelas deste ano. A sardinha de Carnide é a melhor de Lisboa”, promete.

Foto
Carlos Barros defende que a sardinha de Carnide é a melhor de Lisboa Margarida Basto

E finalmente há o pão. Cheira a chouriço e as sardinhas estão loiras. “Guardo o peixe em gelo, só depois levam o sal e quando estão no ponto visitam a grelha”, é o truque de Carlos. Uma das freguesas, enquanto esperava, sem querer, revela o segredo para o arraial que fica lá longe do centro histórico ter o aspecto de quem nunca se foi embora. “Em Carnide, o bailarico é sempre entre família”.

Texto editado por Hugo Torres

Sugerir correcção
Comentar