Alfama põe na marcha a defesa de um bairro em mudança

"Não toquem na minha Alfama" é o tema que o bairro, campeão em 2016, leva este ano ao concurso da Avenida. É uma marcha pela tradição e pelas raízes, mas não é contra ninguém.

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Rui Gaudencio

Passamos rente às bancas de manjericos, desviamo-nos dos bancos corridos, bailamos um pouco para que o empregado com a travessa de sardinhas não nos espete os peixes na cara, subimos degraus, paramos para deixar passar turistas com malas de rodinhas, resistimos às insistências para beber ginjinha, cheiramos no ar para perceber se é chouriço ou entremeada aquilo que nos chega, subimos mais um pouco, apreciamos a azáfama imensa, paramos.

Começou Junho, já não se pensa noutra coisa. Lisboa está engalanada para festejar o seu santo de eleição como mandam as regras e, nas vielas de Alfama, está quase tudo pronto. Aproveitam-se as últimas horas do primeiro dia do mês, uma quinta-feira, para receber condignamente a enchente que se espera na sexta. Montam-se os grelhadores, colocam-se as fontes de cerveja, penduram-se as fitas e as lanternas.

Também se trabalha com afinco no Centro Cultural Dr. Magalhães Lima, já a meio da encosta que trepa para o Castelo. É aqui que se ensaia a marcha de Alfama, vencedora do concurso de 2016 e que, este ano, vai para o Meo Arena e para a Avenida da Liberdade defender um bairro em profunda mudança. “Não toquem na minha Alfama” é o tema da marcha.

Nada de novo, atenção. Não toquem na minha Alfama, letra de Amadeu do Vale, música de Raul Ferrão, foi o tema que os marchantes levaram ao concurso de 1950 e que depois se imortalizou em vozes como a de Júlia Barroso. Novos e velhos, muitos alfamistas conhecem de cor estas palavras: “Oh minha Alfama/Que tens sido baluarte/Do velho Tejo/Que anda sempre a namorar-te/O meu balão/Cheio de luz quando passa/Vai na marcha a dar a dar/Parece até que o mar lhe deu aquela graça”.

Não foi um acaso a escolha deste tema, 67 anos depois de ele ter sido composto. Mandam as regras das marchas que cada bairro leve um tema antigo, a marcha de Lisboa e duas marchas originais. Sobre estas últimas nada podemos dizer, para já: Alfama apresenta-se a concurso este domingo no Meo Arena e, como em tanta coisa da vida, o segredo é a alma do negócio. Também jurámos que nada diríamos sobre os fatos, os arcos e os passos que os marchantes vão apresentar.

Mas do tema podemos falar, não é segredo nenhum. João Ramos, tesoureiro do Centro Cultural Dr. Magalhães Lima e um dos responsáveis pela marcha, explica a opção. “Alfama, em termos de tecido social, está a transformar-se completamente”, diz, a poucos minutos de começar o último ensaio. “Nós não podemos evitar isso e o que queremos é dizer: ‘Sejam bem-vindos, estamos cá para partilhar a nossa cultura, mas têm de ter noção de que nós já cá estamos.”

Não há aqui nada contra o turismo nem contra os turistas, diz Mário Rocha, vulgo Maritó, presidente da colectividade. Pelo contrário, o intuito é que haja harmonia. “Nós só não queremos é estragar as nossas raízes. Porque se acabamos com as raízes, não temos mais nada.”

"Se o que fazes por Alfama é ter nascido aqui, então fazes muito pouco”

Nove e tal da primeira noite de Junho, na rua um calor que não pede manga comprida. Os marchantes vão entrando para o grande salão do centro cultural, a banda entretém-se a tocar Despacito, a música latina que não deverá passar de moda antes do fim do Verão.

Este é o primeiro ano em que a marcha não conta com a mestria de Carlos Mendonça, o famoso “Mourinho das Marchas”, que em 20 anos conseguiu trazer o caneco 13 vezes para Alfama. Mendonça trocou este bairro pelo Alto do Pina em 2010 e no seu lugar ficou a ensaiadora Vanessa Rocha, mas ele nunca se desligou completamente.

Tanto que, só este ano, depois da morte do coreógrafo em Setembro passado, é que os responsáveis do centro cultural pensaram em recuperar Não toquem na minha Alfama. Carlos Mendonça “odiava esta marcha”, segundo João Ramos. “Quando acontece qualquer coisa nos ensaios, um percalço qualquer, brincamos ‘lá está ele’”, ri-se o tesoureiro.

Parece que a escolha não podia ter sido mais adequada. “A maior parte das pessoas está revoltada com o que se anda aqui a passar”, comenta Dália Ferreira, uma moradora do bairro que canta a marcha a plenos pulmões e veio dar uma espreitadela ao último ensaio. “O turismo aqui no bairro… Parece-me que é daí que vem a escolha, mas não tenho a certeza.”

Sim, é daí, mas sem conflitos, sublinham João e Maritó. “Há coisas essenciais do bairro – as marchas, os arraiais, as sardinhas assadas – em que não podem tocar. Queremos que haja uma boa simbiose entre todos”, diz João Ramos. E, acrescenta, a mensagem da marcha vai direitinha para os próprios lisboetas e alfamistas. É um incentivo à acção. “Os portugueses têm memória muito curta. Quando chegámos cá, já cá estavam outros. Ninguém é daqui, propriamente dito. Se o que fazes por Alfama é ter nascido aqui, então fazes muito pouco”, sentencia.

Nisto aparece um casal de holandeses. Ouviram a música lá fora e perguntaram se podiam vir ver. Estão, obviamente, “delighted”, porque “it doesn’t get more typical than this”. Acabaram de aterrar de Amesterdão e logo lhes calhou em sorte uma experiência destas. Não fazem ideia do que cantam os marchantes, mas acham muito bem que queiram defender as tradições do bairro. “Afinal, é por isso que nós cá vimos.”

Este domingo começa a chegar ao fim um percurso com muitos meses para todos os outros bairros onde as marchas são o epicentro da vida comunitária. Alfama está na corrida para vencer, mas acima de tudo quer ganhar a batalha pela tradição. “Que ganhe a melhor. Que Deus seja justo”, vaticina Dália.

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