O chão sagrado de Lisboa

A venda dos hospitais da Colina de Sant’Ana à Estamo deve ser, e tem de ser, considerada nula.

Em cinco sessões abertas ao público (entre 10.12.2013 a 11.02.2014), a presidente da Assembleia Municipal de Lisboa, Helena Roseta, levou a discussão o tema sobre o futuro dos seis hospitais da Colina de Sant’Ana. Este tema surgiu na sequência de projectos de reconversão urbanística já apresentados à Câmara Municipal de Lisboa.

Tal intenção do anterior Governo tinha (e julgo que ainda tem) por base a substituição daquelas unidades hospitalares por um novo hospital, a construir na zona oriental, em Chelas/Marvila. Nessas cinco sessões da AML, todas as intervenções do público e instituições médicas presentes manifestaram-se contra tais pretensões, tomadas no início de 2008 pelo ministro Correia de Campos.

Soubemos então da venda, por 125 milhões de euros, de 16 hectares dos terrenos de quatro desses hospitais (São José, Santa Marta, Capuchos e Miguel Bombarda) à empresa pública Estamo, presidida pelo Dr. Francisco Cal, acompanhado pela equipa da Arq. Inês Lobo. Anteriormente, em 2006, já tinham sido desactivados o Hospital Miguel Bombarda e o Hospital do Desterro.

Na sequência destes factos, a Câmara Municipal de Lisboa tinha já recebido quatro projectos urbanísticos PIP, para lotear os terrenos daqueles apetitosos 16 campos de futebol, em pleno centro da cidade. Estes projectos de reconversão urbana, da autoria dos arquitectos Teresa Nunes da Ponte (S. José), João Favila Menezes (Santa Marta), Inês Lobo (Capuchos) e Belém Lima (Miguel Bombarda), foram notícia do PÚBLICO a 05.04.2014.

Foi por este motivo que a Assembleia Municipal de Lisboa decidiu abrir um debate público, o que implicou a suspensão, até hoje, de tais projectos urbanísticos. Sem estes debates públicos, os referidos hospitais já estariam hoje desactivados. Na altura não se chegou a saber (assim como hoje) quais os orçamentos hospitalares envolvidos em tal mega operação, dita “de concentração de serviços e de redução de custos”, tal como então afirmado pelo presidente (Dr. JMV Santos Penedo), da comissão de reforma hospitalar criada em 2011.

No entanto, a actual presidente do conselho de administração do Centro Hospitalar de Lisboa Central (Ana Escoval) deu recentemente uma entrevista ao PÚBLICO (17.04.2017) onde assegurou o arranque para breve da construção do novo hospital oriental de Chelas. Nessa entrevista pode ler-se que “São José, Santa Marta, Santo António dos Capuchos, D. Estefânia e Maternidade Alfredo da Costa dentro de seis anos vão todos para o novo espaço”. Estas informações não foram até agora confirmadas pelas entidades governativas da saúde.

É um contra senso e os cidadãos não encontram justificação para, ao contrário do que actualmente existe nas grandes capitais europeias (ex., Paris e Londres), pretender retirar os hospitais centenários do centro da cidade de Lisboa. Julgo que ninguém consegue compreender como tão distintos gestores da coisa pública, da ágora política, possam considerar descartáveis, mater ignota, um conjunto considerável de conventos e mosteiros do séc. XVI para os converter em hotéis de charme e outros empreendimentos urbanos.

Estes imóveis constituem um enorme património arquitectónico de grande beleza artística, fazendo parte da paisagem medieval da cidade de Lisboa. Construídos nessa época na Colina de Sant’Ana, que fazia parte da primeira zona habitacional na cidade mais reconhecida do mundo medieval. No colégio de Santo Antão, por exemplo, foram ministradas aulas de ciências entre 1590 e 1759, na sala de esfera (Sphaera Mundi). A cidade de Lisboa não pode ser desembargada da nossa memória patrimonial comum. Este património comum, conventual e monacal do séc. XVI, é de todos e não tem, nem pode ter, valor de mercado porque não tem titularidade, não é negociável, não tem proprietário, tal como o Templo de Diana ou o Mosteiro dos Jerónimos.

Estes antigos conventos e mosteiros são uma propriedade da nossa identidade cultural e fundacional. São imóveis sem direito a ser transaccionados, porque são a manifestação da cultura de um país, da sua fundação como povo e Nação. Constituem o chão sagrado da cidade de Lisboa. Por isto tudo, a venda efectuada à Estamo deve ser, e tem de ser, considerada nula de Direito.

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