À sala, que se vai cantar o fado

O segundo disco de Carlos Leitão, Sala de Estar, confirma o talento de uma voz no fado. A estreia foi no CCB, e agora vai correr o país.

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Paulo Maria/Interslide

Diz-se alentejano e é alentejano, embora tenha nascido em Lisboa. Porque o coração da família está na terra dos pais, Arraiolos. Mas a migração histórica do sul rumo à capital fez com que Carlos Leitão (tal como o seu irmão, Henrique) não nascesse lá. “Só eu e o meu irmão é que não somos alentejanos, mas só de nascença”, diz Carlos. Nasceu no Hospital da ordem Terceira, no Chiado, no dia 11 de Setembro de 1979. Nessa altura os pais moravam em Corroios, onde se instalaram vindos do Alentejo. O fado já morava lá.

“O meu pai cantava fado, de uma forma amadora, e eu comecei a cantar aos 10 anos. Aos 11 ganhei a Grande Noite do Fado dos infantis, no Coliseu. Cantei uma letra que a minha mãe me escreveu e que dizia qualquer coisa como isto: ‘Numa manhã de Setembro/ Com elevado lamento/ Vi o sol já raiando/ Minha mãe me fez nascer’” Para as Noites de Fado geralmente levavam-se claques, para apoiar os concorrentes. “Mas eu, imberbe, não fazia ideia disso, queria era cantar. E não levei ninguém comigo, a não ser os meus pais e o meu irmão.” Ainda assim, saiu vencedor, mas essa vitória não teve nele um impacto especial. “Criou aquele deslumbre natural para uma criança de 11 anos, mais nada.” Na altura, o pai trabalhava no Dubai e ele e o irmão passavam mais tempo em casa. “Éramos os muros de suporte da minha mãe. E como eu estava muito mais tempo em casa tinha de arranjar soluções. O tocar viola, o cantar, os ensaios de escrita, os relatos de futebol feitos com um copo, eram alternativas que eu arranjava para fazer enquanto estava lá.”

Começou também a aprender a tocar viola de fado. “Sempre tive uma educação muito boa, dos meus pais, ao nível dos valores. E cedo tentei definir-me, não por presunção ou arrogância perante os outros, mas por achar que as coisas devem ser genuínas. Se cantar como aquele, serei sempre igual àquele.” Aos 16 anos começou a escrever “a sério”: “Coisas em que me revia, que já não deitava fora. Mas aos 13 já fazia uns ensaios de qualquer coisa que acabou por servir para um disco que gravei aos 17 anos, do qual não me envergonho. Mas quando olho para a capa e me vejo com borbulhas e com óculos…”

O “quarto” alentejano

Durante muito tempo fixou-se no jornalismo, sobretudo no desportivo. Entusiasmava-o levar aquilo a sério. Ainda trabalhou a tempo inteiro uns 7 a 8 anos e como freelancer mais cinco, mas depois fartou-se, do jornalismo e de Lisboa. “Fiquei por cá e aos 23 anos fiz aquilo que foi o sonho da vida inteira do meu pai, que era voltar para Arraiolos. Ele infelizmente não conseguiu, porque faleceu recentemente.” Essa ida para o Alentejo acalmou-o. “Hoje, olhando para trás, acho que foi fundamental para o meu futuro. E a escrita começa a ganhar aí densidade, que era uma coisa que eu achava que me faltava.”

Um dia, estava como instrumentista (viola) a participar numa gravação com o guitarrista Custódio Castelo, quando este o viu, num canto, a escrever. Perguntou-lhe o que era, ele respondeu que não era nada de especial, mas Custódio insistiu e pediu-lhe que trouxesse, no dia seguinte, coisas que tivesse escrito. “Ele leu, gostou imenso, e desafiou-me para gravar um disco. Mas eu ainda estava numa transição, num turbilhão interior, e rejeitei.” Mas Custódio não desistiu e daí nasceu Quarto, o disco de estreia de Carlos Leitão, em 2013. “Foi um nome que me veio à cabeça, ia eu a conduzir. Para quem me conhece, sabe o significado da expressão. Era um disco mais pesado, mais melancólico. O quarto, aqui, significa o Alentejo. Fui para lá para me refugiar e foi daí que as coisas nasceram.”

Quem vir, num só olhar, o título dos dois discos, Quarto e Sala de Estar, vê dois espaços de uma casa. E se o primeiro título remetia para um refúgio, uma intimidade, o segundo remete para um espaço aberto e de partilha: sala é onde se recebem os amigos. Que são vários, no disco. Além dos músicos (Henrique Leitão, seu irmão, na guitarra portuguesa; Carlos Menezes, viola baixo e contrabaixo), há vários nomes, entre músicos, vozes e compositores: Mário Pacheco, Custódio Castelo, Guilherme Banza, Rui Veloso, Jorge Fernando, Paulo Paz, Júlio Resende, Tiago Torres da Silva, Cuca Roseta, Lia Gama, Pedro Calado, Hugo Baletas, “Buba” Espinho, David Pereira, Luis Pontes, João Frade, Domingos Galésio, Samuel Santos. “A ideia foi precisamente essa, convidar pessoas. Podiam ser outros, mas achei que estes faziam sentido.” A presença de Lia Gama tem a ver com o pai de Carlos, falecido em 2016. “Ela fez literalmente o serviço militar com o meu pai, porque casou com um camarada de armas dele e particamente viveu com eles no quartel.” O tema onde ela participa, Terra Certa, foi escrito por Carlos na Áustria, onde estava em tournée, precisamente na manhã do dia em que o seu pai viria a morrer. “Imaginei logo o tema com uma parte para ser declamada. E a Lia, porque é actriz, sabe declamar, sabe o peso que deve dar às palavras. E num tributo ao meu pai ter uma das melhores amigas dele a declamar, acho que é maravilhoso. E ela aceitou.”

Respeito ao cante e ao fado

No disco há também uma moda alentejana, A noite fica-me bem, com letra e música dele e cantada à capela: “É uma coisa que eu já queria ter arriscado há uns anos. E convidei alguns elementos do cante, curiosamente todos de uma geração mais recente mas que conferem ao cante um respeito que é o mesmo respeito que eu tenho pelo fado.”

Há seis anos, foi convidado por Mário Pacheco para cantar no Clube de Fado e por lá continua. Vive da música, embora afirme que em Portugal isso não é fácil. Mas quer manter-se fiel aos valores com que foi educado. “Não vacilo em função dos ventos ou das oportunidades. Sou assim pessoalmente e profissionalmente.” Os valores de que ele fala “são os valores básicos, o respeito pelo outro, a tolerância. Não podemos andar uma vida inteira a defender a democracia, os valores da democracia, e depois, quando somos chamados à razão para os praticar, comportarmo-nos como reaccionários.”

Sala de Estar foi apresentado no dia 20 de Maio, no Pequeno Auditório do CCB, em Lisboa, no ciclo Há Fado no Cais. E vai andar por aí, por outros terreiros e palcos, da Feira de São João, em Évora, às Festas de Corroios, do Castelo de Arraiolos, em Agosto, até ao Teatro Garcia de Resende em Évora ou até à Áustria. O mais longe que puder.<_o3a_p>

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