Violeta Parra, a homenagem de uma noite memorável em Lisboa

Aline Frazão, Mísia, Lula Pena, a dupla Señoritas e Rita Redshoes celebraram de modo vibrante a obra de Violeta Parra no cine-teatro Capitólio, em Lisboa, na noite de 8 de Abril.

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O final de Canta Violeta Parra: Aline Frazão, Mísia, Rita Redshoes, Mitó Mendes, Lula Pena e Sandra Baptista (a tocar adufe, atrás da harpa); ao fundo, os músicos JOSÉ FRADE
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Aline Frazão em Canta Violeta Parra JOSÉ FRADE
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Mísia em Canta Violeta Parra JOSÉ FRADE
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Lula em Canta Violeta Parra a interpretar, lendo, as Centésimas del alma JOSÉ FRADE
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As Señoritas (Sandra Baptista, no acordeão, e Mitó Mendes) em Canta Violeta Parra JOSÉ FRADE
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Rita Redshoes em Canta Violeta Parra JOSÉ FRADE

Foi uma boa ideia e foi, igualmente, bem concretizada. Só faltou que a sala fosse maior. Porque muitas das pessoas que acorreram ao espectáculo Canta Violeta Parra, na noite de 8 de Abril (no agora recuperado cine-teatro Capitólio, no Parque Mayer, em Lisboa) terão ficado à porta. O facto de haver apenas 400 lugares sentados e a entrada ser livre, num espectáculo com Aline Frazão, Mísia, Lula Pena, Señoritas e Rita Redshoes, foi determinante. Deveria encher e encheu.

Mas o importante é que a proposta (idealizada por Rui Miguel Abreu, com direcção musical de Francisco Rebelo) resultou. O vulto de Violeta Parra impôs-se, na sua obra magnífica, e as que a cantaram fizeram-no com o correspondente envolvimento. Com um ensemble de nove músicos, ao qual coube fazer a introdução e os interlúdios instrumentais entre cantoras, e com um cenário onde iam sendo projectadas, na sua admirável exuberância, várias obras plásticas de Violeta Parra, o espectáculo abriu com Aline Frazão. Que cantou, em sequência, Lo único que tengo, o pungente Santiago penando estás (acompanhado a uma cadência de tambores) e, por fim, La carta, que ela já dissera (nas entrevistas feitas a todas as cantoras por Ana Sofia Carvalheda, na Antena 1, que durante um mês esteve indissociavelmente ligada ao projecto) tê-la tocado bastante, por falar em presos políticos e pelo paralelismo estabelecido, a dada altura, com situações vividas em Angola. La carta, que Violeta Parra escreveu quando estava em França, dá conta de prisões ocorridas no Chile. E ela escreveu (e cantou): “Me mandaron una carta/ por el correo temprano/ y en esa carta me dicen/ que cayó preso mi hermano/ y sin lástima con grillos/ por la calle lo arrastraron, si.”

Seguiu-se-lhe Mísia, com um tema imponente, Qué he sacado con quererte, que vibrou de forma admirável na sua voz, na cadência desafiadora e trágica dos seus versos. Convém assinalar, em defesa das interpretações que, em geral, se ouviram na noite, que a poesia de Violeta Parra é tudo menos fácil, quer no rico vocabulário usado quer nas modulações criadas pela autora. O seu vasto cancioneiro (que, aliás, está agora a ser revivido no Chile, a pretexto do centenário do nascimento de Violeta Parra, que coincide em 2017 com o cinquentenário da sua morte), envolvendo recolhas folclóricas e inúmeras canções de sua autoria, é dos mais belos tesouros da cultura popular latino-americana e mundial. O espectáculo Canta Violeta Parra, promovido pela EGEAC, integrou-se aliás na programação da Capital Ibero-Americana de Cultura, que este ano se celebra em Lisboa.

Voltando a Mísia, os dois outros temas por ela cantados são dos mais emblemáticos de Violeta: Volver a los diecisiete e Gracias a la vida, a que Mísia deu um muito aplaudido final fadista. Prova da sua versatilidade, no dia seguinte, a mesma Mísia que ali cantou Violeta Parra (e que na sua já longa carreira de 25 anos ligada ao fado tem abordado vários outros géneros musicais) estava no São Jorge a cantar canções napolitanas (outra das suas paixões musicais) acompanhada ao piano pelo maestro Fabrizio Romano, de Nápoles, no âmbito da Festa do Cinema Italiano.

Depois de Mísia, Lula Pena. Primeiro com Ausencia, que beneficiou do vibrato da sua voz grave e misteriosa; e depois com um enorme risco, numa sala como aquela: a leitura ininterrupta das Centésimas del alma, escritas por Violeta Parra a partir de umas décimas vindas da tradição popular oral chilena. Para quem se interesse, há em LP (raro) uma gravação integral, cantada como numa suite em vários andamentos, por Tita Parra, neta de Violeta; e Violeta gravou, em forma de canção uma parte destas décimas, de 1 a 40, sob o título de Veintiuno son los Dolores. A primeira das décimas (popular, as restantes são escritas por Violeta) é assim: “Una vez que me assediaste/ 2 juramentos me hiciste/ 3 lagrimones vertiste/ 4 gemidos sacaste/ 5 minutos dudaste/ 6 más porque no te vi/ 7 pedazos de mí/ 8 razones me aquejan/ 9 mentiras me alejan/ 10 que en tu boca sentí.” O texto que Lula Pena leu ia até às… trezentas. Que são as que Tita Parra gravou em LP, cantando-as. Apesar de desconforto sentido na sala, Lula Pena fez uma leitura cadenciada, clara, dando às palavras a ênfase necessária para não transformar a audição em martírio. E isso foi conseguido, a julgar pelos aplausos, que traziam à mistura algum alívio (e se fossem mil?).

As Señoritas (Mitó Mendes, voz e guitarra eléctrica e Sandra Baptista, baixo e acordeão, ambas do grupo A Naifa) trouxeram o lado mais militante e socialmente empenhado de Violeta Parra. Desde logo com uma declaração própria, condenando a vergonha das “invasões” a que se deu o nome de “descobrimentos” e dizendo que já se devia ter pedido desculpa pública por elas. De seguida, interpretaram Según el favor del viento, depois um tema tradicional chileno que Violeta Parra popularizou, La jardineira, e por fim Arauco tiene una pena, curiosamente a canção de Violeta mais votada num inquérito online que está a decorrer no Chile, a pretexto dos 100 anos da cantautora: Teve até agora 1270 votos, à frente de (citamos aqui apenas as dez mais votadas) Gracias a la vida (1208), Volver a los diecisiete (1154), La jardinera (1106), Maldigo del alto cielo (987), Run Run se fue pa’l norte (887), Arriba quemando el sol (687), Qué he sacado con quererte (503), Qué pena siente el alma (494) e La carta (484). Mitó Mendes e Sandra Baptista sublinharam no Capitólio o lado de Violeta que fez do seu canto uma arma contra as injustiças.

Por fim, Rita Redshoes. Aproveitando o mote das Señoritas, mostrou a cantora e compositora chilena de um outro ângulo (“depois da Violeta activista, agora a amante e casamenteira”, disse). Só que até o amor, em Violeta, vem envolto num manto de injustiças ou mesmo tragédias. Rita não as evitou e cantou-as ao seu modo, com assinalável bom gosto. Primeiro Porque los pobres no tienen, depois Casamiento de negros e por último Run Run se fue pa’l norte, esse lamento pela ausência de um amor que deixou em Violeta Parra um vazio preenchido a dor e mágoas.

No final, com todas as cantoras e músicos em palco, ouviu-se essa quase valsa que é Que pena siente el alma. Um final feliz para um concerto que ficará certamente na memória de quem o viu. Gravado para a Antena 1, não terá sido, infelizmente, gravado em vídeo. Que pena siente el alma, diria Violeta. Mas talvez renasça, com idêntico fervor, noutras datas e noutros palcos.

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