A prevenção de doenças da boca por quanto tempo mais será parente pobre da saúde?

Hoje comemora-se o Dia Mundial da Saúde Oral. Em Portugal,estes cuidados devem ser transferidos para as autarquias e assim aproximar a questão das famílias.

Há 50 anos a saúde oral (SO) era de facto um parente muito pobre no âmbito da saúde. Recursos humanos muito insuficientes, no total só cerca de 750 médicos estomatologistas (1) e muitas dezenas de práticos dentários sem  ensino superior da medicina dentária, que ainda não tinha nascido, sem formação superior nas áreas técnicas complementares (higienistas, técnicos de prótese).

Acrescia sobretudo a falta de valorização da SO nas políticas da saúde. À pobreza de recursos humanos e financeiros juntava-se a insuficiência de recursos de grande parte da população para aceder ao tratamento dos dentes. Entretanto, ao início do crescimento de alguma capacidade económica adiciona-se a ausência de comportamentos básicos de prevenção favorecendo um campo fértil para o crescimento da cárie e a perda de dentes.

Encontramo-nos hoje a uma grande distância daquela situação. Há recursos humanos em quantidade e qualidade, já há apoios ao tratamento de jovens (cheque-dentista), assim como, em alguns centros de saúde, aos adultos e seniores afectados por doenças crónicas graves. As consultas de estomatologia e cirurgia maxilo-facial dos  hospitais centrais continuam a sua missão iniciada no princípio do século passado. Vislumbra-se também, em alguns centros de saúde, o arranque do tratamento de adultos enviados pelo médico de família.

Houve, portanto, grandes progressos do lado do tratamento. Mas, no capítulo da prevenção da cárie há falhas graves e, sobretudo, desnecessárias, que resultam já não da carência de recursos humanos ou financeiros, pois há grande número de profissionais e se despendem milhões na SO, mas da falta de competência global no planeamento das diferentes vertentes da prevenção. Esta situação tem como causa principal o facto de a SO nunca ter tido como coordenador um profissional oriundo da área, isto é, higienista, médico-dentista ou estomatologista.

Aliás, já os há com formação pós-graduada adequada e/ou experiência de campo de aplicação de medidas de prevenção colectiva. É necessário alterar esta situação e seleccionar o coordenador da promoção da SO em concurso público, por um júri independente e competente, eventualmente da CRESAP, partindo de um caderno de encargos correctamente estruturado.

Depois é necessário, também, colocar no terreno um sistema de diagnóstico e prevenção coerente e aperfeiçoá-lo progressivamente. Deve acrescentar-se que as acções de prevenção da cárie têm uma grande eficácia  quando correctamente aplicadas e podem poupar aos particulares e ao Estado milhões em tratamentos futuros. Repito: a prevenção da cárie se bem aplicada é muito eficaz e tem resultados muito bons com custo baixo.

 A cárie resulta de uma alteração do equilíbrio entre desmineralização e remineralização, no sentido da desmineralização, a qual ocorre na interface do microambiente que existe entre a placa bacteriana e o esmalte dos dentes. Quando se verifica ingestão de hidratos de carbono fermentescíveis (açúcares e farináceos) os ácidos libertados desmineralizam o esmalte com aparecimento gradual de uma cavidade (cárie) no dente.

A sua prevenção tem de se iniciar muito cedo, pouco tempo depois da erupção da primeira dentição, com a escovagem, ainda que inicialmente elementar,  executada duas vezes ao dia, com pasta de dentes fluoretada, pela mão cuidadosa e carinhosa dos pais ou de uma educadora. De facto esta escovagem com uma quantidade mínima de pasta de dentes, constitui uma dupla aplicação tópica de fluoreto a qual activa a fase de remineralização do esmalte de forma muito eficaz. Por isso é necessário que a criança interiorize a higiene oral como uma das tarefas diárias da higiene corporal e que o adulto e o sénior a mantenha para sempre o que, infelizmente, não acontece.

A  escovagem dos dentes com pasta dentífrica é, portanto, o método central e fundamental da prevenção da cárie  e também de outra doença da boca com grande prevalência, a periodontite. Aliás no momento em que se evidencia o crescimento da diabetes na população portuguesa deve salientar-se que a periodontite pode acelerar o seu aparecimento e agravar a sua evolução. Mas muitos pais não induzem a sua execução, em casa, nos seus filhos desde a mais tenra idade, porque a iliteracia na saúde ainda persiste em vastas camadas da população.

Daí que seja de enorme importância que em todas as creches e jardins de infância públicos e IPSS seja introduzida a escovagem dos dentes duas vezes ao dia, o que exige coordenação entre a Direcção Geral da Saúde (DGS) e as estruturas do Ministérios da  Educação responsáveis pelas ditas creches e jardins de infância.

Nalguns casos pode ser necessário reforçar a escovagem dos dentes e aplicar outros fluoretos. Mas os selantes de fissuras preconizados como panaceia universal pela DGS não são seguramente o método mais indicado.

 Os higienistas orais são um grupo profissional especialmente bem preparado para a promoção destas tarefas e devem complementá-las com a observação anual de todas as bocas de todas as crianças nas creches e jardins-de-infância e depois nas idades mais avançadas. Após este exame diagnóstico anual que é essencial podem mesmo fazer aplicações adicionais de fluoretos mas estas não devem ser senão um método complementar da escovagem dos dentes com pasta de dentes fluoretada. Os jovens em que são diagnosticadas cáries cavitadas devem, por sua vez, ser imediatamente encaminhados para tratamento, utilizando o cheque dentista.

O que não se pode é escolher três níveis etários (7, 9 e 13 anos) para aplicar selantes de fissuras em bocas de jovens que muitos deles não escovam os dentes, que vão continuar a não o fazer, para só naqueles níveis etários ser efectuada uma observação diagnóstica. Esta deve de facto iniciar-se entre os 12 e os 24 meses e ser efectuada anualmente. Porque a doença não está parada até aos 7 anos e depois não vai parar até aos 9 e novamente até aos 13. A desmineralização subjacente à cárie é um processo sempre potencialmente presente pelo que os jovens devem, repito, ser observados anualmente desde muito tenra idade.

Esta observação pode ser efectuada na própria sala de aula  e poderá assim ser executada com muito baixos custos. Há recursos para aplicar indiscriminadamente e indevidamente uma medida cara e que exige um consultório dentário, e que só nalguns casos tem justificação, mas não há recursos para uma observação diagnóstica anual. Diagnóstico precoce e tratamento imediato são regras de ouro em toda a medicina e, evidentemente, também na medicina dentária.

A publicação anual dos dados epidemiológicos apurados relativamente aos diagnósticos e tratamentos efectuados, dos custos dos tratamentos, dos resultados de auditorias externas aos métodos de prevenção e tratamento, é outra medida. Também deve ser encarada, a curto prazo, a hipótese de transferência das valências da promoção da saúde oral para o âmbito da gestão pelas autarquias para concretizar a aproximação às famílias e ajudar à sua consciencialização relativamente à sua responsabilidade na SO dos seus filhos.

Estas algumas sugestões para que a nossa SO seja tratada com a diferenciação que merece. Não pode continuar a ser como um menor sem tutela responsável com o qual se fazem experiências que revelam falta de capacidade de gestão desta área da medicina.

Sobretudo, os portugueses não merecem as consequências. Para manter os dentes funcionais nos últimos anos de vida, é evidente que a prevenção das doenças orais em idades mais jovens é fundamental e que os indivíduos devem receber tratamentos preventivos e manter uma correcta higiene oral ao longo da vida.-

 

 

 

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