Esta já não é a casa de banho mais infecta da Escócia

Foi em 1996. Chegou Trainspotting e os seus agarrados, chegou a música e a câmara de Danny Boyle. Ganhámos um filme ícone de uma época. Agora que chega T2 Trainspotting, o que sobra?

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Começava em correria, a de Renton e de Spud, embalagens roubadas a caírem-lhes na calçada e a atrapalhar a correria dos polícias que os perseguiam. Começava com a cadência daquele ritmo e o tom daquela voz, a de Iggy Pop e da sua Lust for life, que era romantização de vida no fio da navalha, ninguém disse que ia ser fácil, mas se fosse fácil e isento de perigos, que piada teria? Começava assim, com o rosto de Renton, ou seja, o jovem e praticamente desconhecido Ewan McGregor, a sorrir-nos um esgar lunático através do vidro do carro que quase o atropelara. “Choose life”, dizia ele, e não tardaria que “Choose life” se transformasse em mantra pouco dado a espiritualidade. “Porque é que eu haveria de fazer isso?”, dirá a seguir, corpo arqueado, cigarro na mão, corpo a cair no soalho empoeirado da sala decadente em que, caldo chutado veia dentro, se deixa cair, cigarro a esfumaçar no mão direita. 

Isto era 1996, no Leith, nos arrabaldes de Edimburgo, “uma zona à beira-rio onde está o porto, no estuário, e que sempre foi muito desfavorecida em relação ao centro da cidade”, conta Raquel Ribeiro, escritora, colaboradora do PÚBLICO e professora de Estudos Portugueses na Universidade da capital escocesa. “Depois da queda da indústria marítima, tornou-se altamente marginalizada. É onde encontrávamos a maior concentração de desempregados, de pessoas que sobreviviam de subsídios e que viviam à margem do embelezamento que foi sofrendo a cidade”. E eles, continuamos em 1996, falavam no calão do Leith, como Irvine Welsh o transcrevera oralmente para o livro que o transformou numa estrela. E eles, Renton, Sick Boy, Spud, Begbie e Tommy, amigos unidos pelo crescimento no mesmo bairro e na mesma escola, unidos nas correrias pelo submundo, pelas traições mútuas, pela devoção ao clube de futebol Hibernians e a George Best, o jogador que foi homem de excessos românticos e decadência real, alguém que também responderia “mas porque é eu escolheria isso?” se lhe viessem com o discurso “choose life”. Todo um universo que levou Eduardo Pinto, produtor teatral freelancer em Coimbra, depois de ver o filme lá longe na década de 1990, a procurar mais da literatura de Irvine Welsh, a partir dele para outros, como William Burroughs, e a vasculhar mais nesse mundo vasto a que chama “o submundo da podridão humana” – “foi dos primeiros filmes que vi que me levou a procurar e a descobrir outras coisas”, diz.

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Renton, Sick Boy, Spud, Begbie e Tommy, amigos unidos pelo crescimento no mesmo bairro e na mesma escola, unidos nas correrias pelo submundo, pelas traições mútuas
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Eles então, unidos pela bebedeira alcoólica habitual, pelo pequeno crime obrigatório e pelos grandes golpes planeados, pela heroína chutada como quem faz um pirete ao confortozinho burguês, enquanto a batida de “Born slippy”, dos Underworld, ressoa pelo corpo na pista de dança, enquanto a música onírica de Brian Eno dá textura de sonho à cena escatológica na “casa de banho mais infecta da Escócia” – uma das cenas que ficou para quem viu na altura e para quem, não tendo visto na altura, já terá sido guiado até ela em clipe de Youtube. “O modo como a música foi usada naquele filme, e a ligação entre a música e a edição, mudou um bocado as regras. Hoje em dia é muito comum uma banda-sonora que vai buscar o alternativo ou o underground, que liga o passado, naquele caso dos anos 1970, e a contemporaneidade, mas na altura não o era”, recorda Pedro Fradique, programador do Lux, em Lisboa. "Quando ouvíamos o Born slippy no Alcântara ou no Kremlin, era um clímax que todos partilhávamos", recorda.

Trainspotting foi há 21 anos. Transformou o realizador Danny Boyle, o actor Ewan McGregor e o escritor Irvine Welsh em estrelas. Fez de Spud (Ewen Bremner ), Sick Boy (Jonny Lee Miller), Begbie (Robert Carlyle), Tommy (Kevin McKidd) e Diane (Kelly MacDonald) personagens com lugar reservado na cultura popular. Tornou-se um marco cultural, um filme que capturou um tempo e, ao mesmo tempo, agiu nele – pensemos, por exemplo, no subsequente renascimento de Iggy Pop, pensemos como o realismo-surreal de Boyle contaminou produção cinematográfica posterior. Ainda assim, 21 anos são muito tempo. Leva, por exemplo, a que, numa grande superfície comercial lisboeta, perguntemos se haverá disponíveis DVD do filme e, pergunta feita, a empregada de balcão profira as seguintes palavras à colega do lado: “Temos um DVD do Trem do Sporting?”. Mas também a que seja possível encontrar, duas décadas depois, posters com o famoso discurso de arranque do filme e um Renton ressacado-glamoroso a decorar cafés e bares, tal como, na altura, decoraram incontáveis quartos e salas de jovens e adolescentes mundo fora.

Um novo mundo que se abre

Que Trainspotting sobreviveu, é inegável, como o comprova a atenção e entusiasmo devotado à sua sequela, T2 Trainspotting, desde que esta começou a ser noticiada, desde que se tornou público que Danny Boyle e Ewan McGregor se tinham reconciliado por fim, depois de anos e anos desavindos, consequência de o realizador ter posto o amigo de lado, escolhendo Leonardo diCaprio como protagonista de A Praia (2000). Teve estreia mundial em Berlim, depois de exibido em Edimburgo, como era obrigatório, e chegou às salas portuguesas esta quinta-feira. T2 Trainspotting é sobre as duas décadas que passaram e sobre o que se faz com o que tempo que passa e a vida que avança (ver texto nas páginas seguintes) – e esse movimento no ecrã será acompanhado por quem vê do lado de cá. Porque Trainspotting é desses filmes. Quem esteve lá lembra-se perfeitamente. 

Raquel Ribeiro tinha 16 anos e não podia ficar indiferente. “Achei que tinha uma imagem bastante nova em relação a coisas que tinha visto recentemente, com toda aquela velocidade, com a luz e a música, num todo quase psicadélico, que me encantou. Não era por ser Edimburgo, era aquilo que eu estava a passar aos 16 anos, com as discotecas e a música e os amigos que tomavam drogas” – curiosamente, Raquel viu o filme recentemente e não recomenda a experiência: “não gostei nada, achei que envelheceu muito mal, mas, naquela altura, o Danny Boyle tinha um olhar novo”.

Eduardo Pinto também tinha 16 anos (“talvez 17”) quando o viu. Não na sala de cinema – “ainda era demasiado novo para isso”. Viu-o em casa com amigos, na televisão, enquanto no vídeo VHS rodava uma cassete com a gravação de uma Sessão Dupla da TV2. Trainspotting e Kids, de Larry Clark. Foi como se um novo mundo se abrisse perante o seu espanto. “Eu era um miúdo da aldeia, da Bairrada, muito distante daquilo que estava a ver. Ao contrário de alguém da minha idade que vivesse numa cidade, eu não fazia sequer ideia que pudesse existir um mundo assim. Só anos depois é que percebi que tudo aquilo estava mais próximo do que julgava” – e algo ficou a borbulhar porque anos depois, já em 2003, quando se juntou ao Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC), chegou a planear uma adaptação de 4 Play, reunião de quatro dramaturgias de Harry Gibson a partir da obra de Irvine Welsh, incluindo, naturalmente, Trainspotting (nunca chegou a concretizar-se em palco, mas a tradução do texto ficou feita).

Pedro Fradique não consegue olhar simplesmente para trás. Aponta a forma como o filme se ligava ao mundo contemporâneo de então como determinante. Tinha 26 anos e via um filme que se relacionava com a sua própria história. Juntando a Trainspotting outro filme que deixou marcas, 24 Hour Party People (Michael Winterbottom, 2002), dirá: “Uma coisa é ver filmes dos Beatles, que são da geração dos nossos pais, outra coisa é veres retratado algo que faz parte do teu crescimento e do teu caminho para a vida adulta. Entusiasma ver transformado em ficção uma matéria-prima que também é da tua biografia”. Enquanto fala ao Ípsilon, continua a recuar no tempo e diz lembrar-se que, à época, a programação do Lux estava ainda distante – ganhava a vida a escrever textos para a RTP e para a imprensa. Mas rapidamente atalha caminho pela memória. “A maior realização existencial é saber que vou ver o novo filme com a mesma pessoa com que vi o primeiro. E entretanto temos um filho. Pensar em 1996 e nos 20 anos que passaram do Trainspotting é mais um daqueles marcos que nos dão a percepção da passagem do tempo, mesmo que não o notemos. No Trainspotting não há cenas com telemóveis, não há Facebook ou Instagram, por exemplo”. Com o aproximar da estreia de T2 Trainspottting, sente-se curioso, mas também receoso. “O primeiro está tão bem, é tão único, para quê mexer outra vez? Quero acreditar que não estragaram nada”.

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Chris Jackson/Getty Images

Eis então, novamente, o célebre discurso “choose life”. Em T2 Trainspotting, não é manifesto de abertura a partir do qual tudo se desenvolve. Desta vez, chega a meio do filme e é debitado com desencanto na voz. Desta vez, não há solução, não há heroína e aquele “quem precisa de justificações quando tem heroína?” que fechava o genérico. “Choose life. Escolhe a vida. Escolhe o Facebook, o Twitter, o Instagram e fica à espera que alguém num sítio qualquer se interesse, escolhe ir à procura das namoradas antigas e desejar que tivesses feito tudo de maneira diferente e escolhe ver a história a repetir-se. Escolhe um iPhone feito na China por uma operária que saltou do telhado. Escolhe um contrato de zero horas e duas horas de viagem para o trabalho e escolhe o mesmo para os teus filhos, só pior, e apaga tudo com uma dose desconhecida de uma droga desconhecida improvisada numa cozinha qualquer. Escolhe a desilusão”.

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De certa forma, Renton, Sick Boy, Spud e Begbie são fantasmas a atravessar uma outra cidade num novo tempo. Fantasmas que não assombram ninguém e interagem com toda a gente, fantasmas com novas-velhas vidas: ainda belicosos, ainda adoradores de George Best, ainda às voltas com drogas e esquemas mais ou menos engenhosos para dar o grande golpe, se for preciso trair os melhores amigos, pois lá terá que ser, e sem remorsos, que o que interessa é fugir da vidinha triste. 

A forma como a cidade, a nova cidade, se revela é para Raquel Ribeiro um dos seus pontos mais interessantes. “Leith passou por toda a crise nos anos 1980 e só começou a ter uma limpeza como vimos no Intendente, em Lisboa, nos anos 2000, quando já não há praticamente indústria e se constroem arranha-céus todos modernaços. Começou a gentrificação, a transferência do turismo do centro, a chegada de uma série de restaurantes com estrelas Michelin. É uma zona para se sair à noite, com os jovens artistas que não têm dinheiro para viver no centro. Ainda vemos pubs completamente decadentes, com a mesma carpete desde1920 e um cheiro intenso a cerveja, ao lado do café mais hipster”. De 1996 para cá, diz, “Edimburgo transformou-se numa cidade postal, uma cidade cosmopolita, mas altamente burguesa”. Ainda existem os icónicos prédios de habitação social de Muirhouse (onde continua a viver Spud). E lá se erguem no Leith os novos edifícios, caros e de construção moderna, em que encontramos agora Sick Boy. “Um continuou no bairro social, o outro subiu na vida à custa das suas falcatruas e comprou uma casa no sítio a que todos queriam chegar”. Diane, a namorada menor de Renton há 20 anos é agora uma advogada bem instalada na vida. “O filme mostra que ela conseguiu atingi-lo porque andava numa escola privada, super rica, super bem. Os outros não escaparam à sua circunstância de classe”.

Uma cidade obcecada

Nesta nova Edimburgo, Trainspotting continua a ser um marco. “Obcecada” é o termo utilizado por Raquel para falar da relação da cidade com o filme que “colocou a Escócia no mapa britânico e europeu”. Para os escoceses, diz Raquel, “Trainspotting é como o Braveheart: quando chegas à Escócia, tens que ver o Braveheart e tens que ver o Trainspotting”. Na sua rua, onde uma das cenas foi filmada, “toda a gente estava histérica, porque os actores e a equipa iam às lojas comprar livros e beber café”. No cinema, a projecção é antecedida de uma mensagem pessoal de Danny Boyle, a manifestar-se muito feliz por regressar 20 anos depois. Durante o filme, “há toda uma série de piadas privadas que, não sendo de Edimburgo, não conseguimos perceber”. Há um “turismo nostálgico por meio audiovisual” a tomar conta da fruição da sequela. Há reencontro e distanciamento.

A cidade de 1996, que por sua vez reflectia o período dos anos 1980 a que nos remetia Trainspotting, o livro, era perigosa e decadente. Cerca de 25 por cento da sua população habitava casas precárias e a expressão “epidemia” era aplicada quando se falava da incidência de toxicodependência na população – em 1986, mais de 50 por cento dos consumidores de heroína locais testaram positivo ao teste de HIV. Quando Renton, Sick Boy e os restantes se apresentaram no grande ecrã, o entusiasmo que provocou teve equivalência na polémica. O Governo britânico, no estertor final conservador de John Major (Tony Blair e o seu alvo sorriso de dentífrico estavam a chegar), ameaçou a proibição por incitamento ao consumo de drogas ilícitas. O senador Bob Dole, candidato republicano nas presidenciais americanas de 1996, acusou-o de depravação moral e de glorificar o uso de drogas – e depois, claro, confessou nunca ter visto o filme. Em sentido contrário, começávamos a ver Kate Moss, pálida, com grandes olheiras e cabelo cuidadosamente desgrenhado, como modelo preferencial do “look” do momento, inenarravelmente classificado como “heroin chic”. Em Portugal, quando da estreia, o Dr. José Pádua, nas páginas do Público, desaconselhava ex-toxicodependentes a vê-lo. Ainda se lembrava da “quantidade de pacientes que recaíram depois de verem Travolta a injectar-se no Pulp Fiction”.

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Concentrando-nos na heroína estávamos, porém, a olhar para o lado errado. Como escrevemos no PÚBLICO quando da estreia do Festival de Cannes, Trainspotting era mais “experimente com o filme o que eles experimentaram com a seringa”. A música e o humor, entre o caos e a decadência, glamorizam, mas estamos sempre a ver de fora.  “O filme gere muito bem o trágico e o cómico, numa alternância de disposições muito específica”, destaca Pedro Fradique. “O que me ficou foi sempre o conjunto. A música, o imaginário dos subúrbios, a desorientação existencial. Nunca papei essa ideia de glamorizar as drogas”. Eduardo Pinto recorda um ponto que raramente vê destacado, a ideia da amizade, por turbulenta que seja, que junta aquele grupo. “Une-os a podridão em que caíram e a amizade que tinham”. Depois de ver Trainspotting, “vi-me perante uma possibilidade, que era eu próprio entrar naquela rotina, mas pareceu-me que a literatura e o cinema eram melhor opção”.

Havia ali retrato social, euforia e desespero, um lado caricatural e uma liberdade realista no linguajar que cativou. Havia, principalmente, uma ideia de fuga, de rebelião niilista contra uma realidade social que excluía e onde não se queria ter lugar. Não era fuga da miséria, mas de um vazio por preencher. Viver como era prometido socialmente, não era viver realmente. O filme surge num contexto em que nos diziam que as ideologias tinham morrido, que a História ela mesma tinha acabado, que o crescimento seria imparável e tudo correria pelo melhor no melhor dos mundos possíveis do capitalismo triunfante. Ou, como diz Raquel Ribeiro, “que a prosperidade era realmente possível e que tomar drogas até ao fim da vida vai resultar porque há um bom Serviço Nacional de Saúde”.

E T2 Trainspotting? T2 Trainspotting é o confronto das personagens de ontem com os falhanços deles próprios e desse novo mundo anunciado. Ouvimos algures, “o mundo muda mesmo quando nós não mudamos”. E, entretanto, Born slippy começa a ouvir-se em fundo, Iggy Pop começa a sua correria. "Lust for life"? “Choose life!” Muito bem. Mas o que é que isso quer exactamente dizer agora?

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