Vai sair? Já saí!

Estou no carro à espera da Maria João. Estou a escrever. Buzinam-me. Batem-me à janela. Soletram à distância as mesmas sílabas: “Vai sair?”

Não. Aponto para o caderno onde escrevo. Não chega. Insistem, já um bocadinho zangados: “Vai sair?” Apetece-me responder: “Sim, vou sair daqui a duas horas, quando tiver acabado de escrever esta merda.”

Ou agradecer: “Obrigado por me interromper. Estava aqui a escrever uma quadra que nunca mais conseguia rimar. Foi um favor que me fez, sabe? Não quer ficar com o meu lugar? É que eu vou ali atirar-me do Precipício dos Poetas e já não volto.”

É a mesma coisa quando estou sentado a ler ou a escrever. Apontam as cornaduras na minha direcção e não descansam enquanto não marrarem comigo: “Está sozinho?” Se eu responder “Não, estou a ler”, pensam que eu estou a contar uma anedota. Fingem rir e eu, que me odeio acima de todos, às vezes rio-me com eles.

Em Portugal não se pode ver ninguém sozinho a divertir-se — começa logo com a infância — sem pensar que é um desgraçadinho, sem amigos ou alternativa, a tentar ocupar o tempo antes de ser tempo de voltar para o quarto.

Quando me apanham a ler o Kindle ou o iPad, ralham com o dedo e, com uma voz irritante e paternalista, dizem: “Está a ver o Facebook?” Respondo que é irresistível e eles aconselham-me a largar “os livros” e a viver mais a vida e conversar com as pessoas, para não estar sempre ali sozinho, a ver navios.

Vai sair?” A pergunta está no tempo errado. Mal começam a fazê-la, já eu saí do sossego em que estava.

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