Guardar o tempo

O regresso de Pamuk, Nobel em 2006, com mais um dos seus grandes romances: Uma Estranheza em Istambul. Istambul volta a ser a personagem principal.

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Pamuk leva o leitor pela mão através de Istambul

Seis anos depois da publicação de O Museu da Inocência (Presença, 2010), o turco Orhan Pamuk (n. 1952) regressa com outra história, igualmente narrada de forma magistral, de amores ‘impossíveis’. Se no livro anterior o amor entre Kemal e Füsun era impedido pelas convenções burguesas da sociedade turca e pela tradição (da qual Kemal parecia não ter vontade de sair, talvez por nunca ter pensado nisso), neste recente Uma Estranheza em Mim a consumação desse amor é dificultada por um elemento exterior ao protagonista Mevlut, que acaba por aceitar conscientemente a “armadilha que a vida lhe preparara”. Em ambos os romances é a tradição social que adia a felicidade.

Em Uma Estranheza em Mim um jovem, Mevlut, vê uma rapariga num casamento, apaixona-se, e durante três anos envia-lhe cartas de amor. Passado esse tempo, combinam uma fuga. Mevlut apareceria uma noite na aldeia da Anatólia onde a rapariga vivia, e raptá-la-ia com a ajuda de um primo que conduziria um furgão. E assim acontece. Quando se preparam para partir para Istambul, um relâmpago ilumina tudo (incluindo o rosto da jovem), e Mevlut é tomado por uma estranheza, sem ter a certeza se ela estava no seu espírito ou no mundo. “No escuro , via as sombras de pássaros míticos. Via palavras escritas em caligrafias incompreensíveis e as ruínas dos exércitos de demónios que tinham atravessado estas terras remotas centenas de anos antes. Via as sombras de pessoas que tinham sido transformadas em pedra como castigo pelos seus pecados.”

A acção do romance decorre entre 1968 e 2012, e Pamuk aproveita – muito ao seu jeito – para levar o leitor pela mão através de Istambul e ditar uma espécie de crónica da cidade, sublinhando não só os aspectos urbanísticos e económicos, mas também os políticos e sociológicos. Ele leva-nos a descobrir a cidade por entre os tumultos das suas vozes e cheiros, sempre algures entre a tradição e a modernidade, com “imagens” cuidadas e de reminiscências de um “tempo perdido”, de uma felicidade que sente perdida algures, numa melancólica viagem com guia à alma de uma urbe que já foi capital de dois impérios. Pamuk olha para Istambul com aquela nostalgia profunda a que os turcos chamam hüzün, como se ele quisesse guardar nos seus romances um tempo passado, perdido, e a cidade surge assim como um lugar de perda, e também de luto, cujas descrições são pontilhadas com notas de elegia nostálgica.

Nas mais de seiscentas páginas de Uma Estranheza em Mim, há muito espaço para Orhan Pamuk exercer o seu charme na arte de narrar, desde informar logo que o seu papel como narrador será tão-só o de ordenar os acontecimentos para que os leitores os entendam como mais facilidade, até dar a palavra às personagens, à vez em partes de capítulo, para que contem a sua versão de algum dos acontecimentos. O romance está dividido em sete partes, que não sucedem cronologicamente. As longas analepses feitas na história nada têm a ver com a suspensão da narrativa para deixar o leitor na expectativa de algo, mas de uma maneira de aclarar o que vai ser contado a seguir. De certa forma, é a cidade que aos poucos se vai tornando na personagem principal do romance, tornando os protagonistas em actores secundários, uma espécie de espelhos das mudanças que vão acontecendo a todos os níveis. É assim que os vemos a lidar com a religião, com a herança das ideias seculares de Atatürk, com o golpe de estado militar, com a política e as transformações económicas.

A história de amor de Mevlut – por um lado pouco comparável à de Kemal, que acaba a construir um museu com as relíquias (pontas de cigarro, ganchos de cabelo, bilhetes de autocarro…) da mulher amada – é sobretudo um hino à dignidade de alguns sentimentos, e o preço pago por ele foi alto: mais de duas décadas à espera da mulher por quem se apaixonou. Mesmo que este Mevlut, vendedor de boza e de iogurte, não fique na galeria de personagens marcantes da história da literatura, ficará certamente na memória dos leitores como uma espécie de primo turco (nisto à semelhança do Kemal de O Museu da Inocência), pobre e feliz, de Florentino Ariza, o homem que espera cinquenta anos por uma mulher em O Amor nos Tempos da Cólera, de García Marquéz.

Os romances de Orhan Pamuk evocam sempre subtilmente a magia dos tradicionais contadores de histórias, e também a dos clássicos da literatura, desde a Sherazade de As Mil e Uma Noites ao Manuscrito Encontrado em Saragoça, de Jan Potocki. Pamuk consegue fundir tudo isto de maneira admirável usando ainda o que aprendeu em Conrad, Proust, Dostoiévski e Joyce (para nomear apenas os referidos pelo próprio), e oferece-nos “um mundo contado aos leitores”. No caso de Pamuk, a clássica máxima cartesiana deveria ser mudada para ‘Eu sou porque narro’, como notou Margaret Atwood há uns anos no New York Times.

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