De quem é o jogo?

Mais de 400 mil mortos depois, há gente que nunca vai poder desistir.

Naief Abazid tinha 14 anos quando alinhou no que uns miúdos mais velhos lhe ordenaram. "É a tua vez." Ele pintou: "Dr Bashar al-Assad". Os outros escreveram mais coisas. Era de noite e aquela parede ficava por baixo do gabinete do director da escola de rapazes Banin, de Daraa, no Sul da Síria. 16 de Fevereiro de 2011. Quis fazer os outros rir e pintou. No dia seguinte, foi para as aulas.

Demorou a compreender. "Só quando saí da prisão é que percebi que era grave", conta agora, a um jornalista do Globe and Mail canadiano, enquanto come um McDonalds na estação de comboios de Viena.

Os rapazes de Daraa, os rapazes dos graffiti, não sabiam. Que iam ser presos e maltratados e que as suas famílias iam exigir saber deles. Não sabiam que a sua cidade ia sair à rua e, depois, quase um país. Não tinham como saber que o Dr. Bashar al-Assad ia responder com tanques e que iam morrer pessoas e cada vez iam sair mais à rua em resposta, até uns quantos começarem a desertar para não matar mais ninguém. Não sabiam que, ao lado destes desertores, professores e médicos e agricultores iam pegar em armas para defender os filhos. Que outros países quereriam aproveitar. Que os terroristas iam aparecer todos.

"Foi uma coisa tonta", diz agora o jovem, à espera da resposta das autoridades de imigração austríacas. "Era um miúdo. Não sabia o que fazia."

Se fosse só Naief, talvez o cessar-fogo comunicado por russos e turcos pudesse anunciar paz. Tantos sírios já se arrependeram de ter saído à rua por causa dos miúdos dos graffiti e do que veio a seguir. De cada vez que ignoravam o medo, e eram cada mais e se sentiam mais seguros, destapavam outra desgraça. Uma crueldade e uma impunidade que não podiam antecipar. Até as palavras, massacre, tragédia, fome, deixarem de fazer sentido.

Naief está longe. Como mais cinco milhões. Dentro da Síria, há quase dez milhões a viver mal. E outros tantos milhões numa normalidade absurda, em zonas que o regime diz pacificadas. Alepo caiu de miséria, como antes Homs ou Daraa. Falta Idlib, onde estão milhares dos que deixaram Alepo, que para ali foram sabendo que Idlib seria a nova Alepo se não se negociasse, agora que Assad quer e os russos resolvem.

"A cadeia de revoluções coloridas que se espalhou no Médio Oriente quebrou-se", disse há uma semana o ministro da Defesa russo, Sergei Shoigu. Naief começou esta história a brincar. Mais de 400 mil mortos depois, há gente que nunca vai poder desistir. Mesmo que agora os sírios, uns e outros, tenham de jogar o jogo de Putin.

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