A Hollywood dos Lemon Twigs é sempre longe demais

Brian e Michel D'Addario fazem pop ambiciosa e glamorosa. Nela cabem McCartney e os seus Wings, Bowie, Bacharach e prog-rock. São fãs de musicais e não sabem o que é isso de ser cool. Do Hollywood chegou para separar as águas.

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Brian e Michael D’Addario, 19 e 17 anos de idade, ex-actores infantis com currículo na Broadway que, na verdade, nunca quiseram mais que isto: gravar música, gravar mais, gravar melhor

Brian D’Addario não perde tempo. A conversa vai ainda no início quando nos apresenta os muito bem identificados alicerces dos The Lemon Twigs. “Toda a nossa base para compreender música era a britânica dos anos 1960. Principalmente os Beatles, os Animals e os Herman’s Hermits. Em qualquer coisa que façamos isso vai estar presente. Está enraizado”. Pode estar na essência e sim, ouvimos o espírito de Ray Davies canalizado aqui e ali e o de McCartney por todo o lado, mas não é (simplesmente) essa fundação que fez dos The Lemon Twigs uma surpresa, aparentemente vinda do nada, no final de 2016.

Chegou Do Hollywood, o álbum de estreia, e, qual Charlton Heston enquanto Moisés no grande ecrã, dividiu as águas. Porque se a fundação é a boa e fiel pop britânica da década de 1960, a construção que sobre ela fazem Brian e Michael D’Addario, apoiados pela produção de Jonathan Rado, dos Foxygen, é de todo inesperada. A banda que exibe orgulhosamente o mullett que grassou sem restrição nos anos 1980 (e na cabeça de Rod Stewart enquanto vocalista dos Faces, cabelo curto de perfil e de frente, descendo comprido sobre as costas), a banda que se veste como se saída de um sonho glam da década de 1970 e que se filmou enquanto personagens do Amadeus de Milos Forman no vídeo para These words, essa banda, dizíamos, revela um talento tão apurado quanto o seu descaramento.

Os Lemon Twigs fazem música pop grandiloquente, sem qualquer pudor em mostrar apreço pelo lado mais escorreito dos Wings, em piscar o olho a esses baladeiros soft-rock chamados 10cc, em sugerir os Kinks num andamento vaudeville movido a banjo ou em deitar mão a sintetizadores diversos para partir em viagem prog espaço fora. São canções, senhoras e senhores, simplesmente canções – mas luxuosamente trabalhadas para que, como num micro-musical, caibam três ou quatro em cada uma e aperfeiçoadas com mão de artesão, de forma a que pareçam sempre mais simples e escorreitas, naturalíssimas ao ouvido, do que são realmente.

Apresentem-se Brian e Michael D’Addario, 19 e 17 anos de idade, respectivamente, ex-actores infantis com currículo na Broadway mas que, na verdade, nunca quiseram mais que isto: gravar música, gravar mais, gravar melhor. Do Hollywood pode ser só o início, mas eles começam lá de cima: soam a estrelas antes de o serem (2017, especulamos, tratará dessa questão).

Do outro do mundo, lá longe em New Jersey, Brian, o mais velho dos irmãos D’Addario, fica a saber que na redacção do Ípsilon os jornalistas andavam atarefados com as inevitáveis listas de melhores do ano. Brian entusiasma-se. “E em que lugar é que ficámos?”. Desconversa-se para aqui e para ali, contorna-se a questão e ouviremos do outro lado, “desde que estejamos em primeiro, está tudo fixe”. Uma gargalhada, mais desconversa e uma voz tornada sussurro que se ouve desde New Jersey. “Mente-me, pá, mente-me”.

Brian D’Addario está a esconder a verdade com humor. Os The Lemon Twigs são ambiciosos e levam muito a sério essa ambição. As canções são a sua vida, literalmente, e eles querem-nas grandiloquentes, surpreendentes, capazes de provocar assombro, êxtase e aquele sorriso vivo ou suspiro terno que acompanha uma melodia bem construída. Brian explica o processo. “O meu objectivo quando estou a compor é conseguir entrar em contacto com algo intocado. Essa é a fonte de todas as grandes canções. Pessoas como o Leonard Cohen e o Bob Dylan sentiam que não escreviam as canções, que as capturavam. Sinto isso por vezes, mas ainda não o sinto sempre”, explica um D’Addario entregue à meditação composicional metafísica. Prossegue. “O objectivo é entrar em contacto com o reservatório onde estão todas as coisas boas e beber desse reservatório”. Diz isto, faz uma pausa – “bem, já estou a soar meio pateta” – e sorri novamente.

Da Broadway para Hollywood

É ténue a linha que, nos The Lemon Twigs, separa o sentimentalismo da profundidade das emoções, a linha que separa a sinceridade do artifício, a que distingue a citação da invenção, a que nos mostra em que lado estão a seriedade e a galhofa. “Algo que passa nas nossas canções é algum humor, que não é algo a que, habitualmente, as pessoas queiram recorrer em música. Mas eu não acredito que, para a música ser boa, tenha que ser séria do princípio ao fim. Um dos meus compositores favoritos é o Gilbert O’Sullivan [representação perfeita de um certo mainstream pop dos anos 1970]. Não é dos tipos mais respeitados, mas compôs canções incríveis que toda a gente conhece pelo nome. Não nos limitamos ao que é considerado cool em determinado momento”. De facto.

Brian D’Addario está em casa, em New Jersey, a gozar um mês de pausa natalícia. O “dolce far niente”, porém, está longe de o sossegar. Fala de um gravador de fita que encomendou com o irmão e que estará quase a chegar. É importante que chegue. “A minha esperança é que tenhamos oportunidade de montar o estúdio e gravar qualquer coisa. A parte trabalhosa disto tudo são as digressões”, confessa. Dar concertos ao final do dia é a “recompensa”, inexistente na maioria das profissões. Gravar e compor música, durante todo o tempo disponível, “é uma paixão”: “se parasse de o fazer, não sei que propósito teria na vida”. Olhando para o percurso dos irmãos, não surpreende a confissão.

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Têm como pai um músico que tentou fazer carreira na década de 1970 e 1980, sem nunca o conseguir verdadeiramente, e que é hoje professor de música – cresceram, portanto, rodeados de discos e instrumentos, que aprenderam a tocar desde muito cedo. Têm como mãe uma actriz que falhou igualmente em assegurar uma carreira profissional, e que trabalha hoje como psicóloga – mas levava os filhos ao teatro amador da comunidade, ali foram descobertos por um agente e, quando deram por ela, aos 5 e 7 anos de idade, estavam a participar em encenações na Broadway de Os Miseráveis, d'A Pequena Sereia ou de Todos Eram Meus Filhos, de Arthur Miller. A vida no palco, ou nos bastidores a maquinar em canções, parece uma inevitabilidade. Brian diz que a parte do teatro e dos musicais foi um acidente de percurso. Ou seja, uma experiência que deixou marcas – “fomos expostos a muitos musicais e, ainda que não estivéssemos tão obcecados com eles como com os Beatles, essa influência sente-se” -, mas que nunca poderia ser parte do seu presente.

Quando chegaram à pré-adolescência, a idade em que a voz se transforma, sempre na altura errada, em grasnar pouco dignificante, secaram os castings e acabou-se a carreira teatral. Ficou a música a tempo inteiro. Gravaram um disco, What We Know, edição limitada a 100 cópias em cassete, que hoje renegam. “Não o percebemos na altura, mas o que nos desagrada é que estávamos a tentar encaixar numa cena pré-existente”. Estavam a tentar fazer música à moda dos MGMT ou dos Flaming Lips, psicadelismo moderno, portanto, o que é um bom modelo de aprendizagem, mas nunca, sabem agora, o resultado final. Naquelas canções, porém, alguém viu mais longe. Jonathan Rado, dos Foxygen, ouviu e abordou-os. Queria produzi-los, trabalhar com eles. Brian e Michael, admiradores do seu trabalho, descobriram alguém que partilhava o mesmo método criativo. “Muita gente tenta tão arduamente trabalhar como se começasse por uma folha de papel em branco. Não sei se é por não quererem soar parecidos com ninguém, sei que o processo resulta normalmente muito brando e muito aborrecido. Nós quisemos pegar em todos os aspectos que gostamos, de tudo o que conhecemos, e filtrá-lo pelo nosso olhar”. Jonathan Rado, “conhecendo intimamente todo o seu equipamento, pegou no que tínhamos feito nas demos e amplificou-o”.

O resultado foi Do Hollywood, que tem McCarntey em relação tórrida com os ELO (I wanna prove it to you), que troca as voltas à sinceridade emocional de Tobias Jesso Jr. com uma viagem no carrossel de Being for the benefit of Mr. Kite (Maroomata), que funde secção rítmica funk, com Stevie Wonder no horizonte, com instrumental swingado a solo de marimba e explosão de luz e chuva de confettis no salão (These words). Que põe Ziggy Stardust a cantar canções de amor e a brincar aos clássicos (As long as we’re together, o single de estreia) ou que faz de Burt Bacharach e dos Zombies exploradores da idade espacial, impecáveis nos seus fatos de gala de astronauta (e eis-nos a passar de Frank, a penúltima, para A great snake, a despedida). É música pop mais leve que o ar, é música repleta de recantos por descobrir, revelando novas saídas onde menos se espera. Trauteamo-las descontraídos ignorando onde nos irão conduzir no minuto seguinte. É, também, música sem espaço para o meio-termo. Amor ou desdém incondicional.

Na capa de Do Hollywood vemos os irmãos D’Addario numa berma de estrada anónima. Entre eles, um poste onde se anuncia o caminho para sul e a proximidade de obras na estrada. “A versão ficcional da história conta que eu e o Michael, um par de palhaços de Long Island, vão para Hollywood à espera do brilho e do glamour do mundo do entretenimento mas, quando lá chegamos, só vemos trampa em todo o lado. Daí a contracapa”. Não tínhamos olhado com atenção para ela. Olhamos agora. Um contentor de lixo. “Pareceu-nos que tocava no ponto exacto que queríamos ilustrar”.

Uma derradeira surpresa dos irmãos D’Addario. O glamour descobre-se onde menos esperamos. E como são glamorosos, no melhor dos sentidos, os Lemon Twigs.

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