Os reis do underground

Uma edição para descobrir como os Pink Floyd se descobriram a si mesmos.

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27 discos, entre CD e DVD, mais cinco singles de 7” reproduzindo edições originais, cópias de cartazes e mais memorabilia

Não podia ser uma caixa simples com material inédito. Falamos, afinal, dos Pink Floyd. Se é para fazer alguma coisa, é para fazer bem e em grande. The Early Years Box Set: 1965-1972 é, decididamente, em grande. 27 discos, entre CD e DVD, mais cinco singles de 7” reproduzindo edições originais, cópias de cartazes e mais memorabilia associada. Estão lá os singles e a vida antes de os Pink Floyd pensarem em gravar singles, estão lá as gravações para a BBC, as ideias que não passaram a disco, as primeiras ambiciosas criações de palco, entre o concerto e a dramaturgia, e os registos da evolução da banda em concerto nesses primeiros e decisivos sete anos. Por 499,99 euros, toda a história ficará registada e luxuosamente arquivada.

Existe, paralelamente, uma edição mais modesta, em mero CD duplo (dela damos conta nesta crítica). Comparativamente à caixa, as 27 canções de Pink Floyd The Early Years 1967-1972 —  Cre/ation podem parecer curtas demais, mas testemunhamos o mesmo percurso, amputado dos dois anos iniciais, em que banda trabalhava ainda sobre uma base rhythm’n’blues, muito influente à época. Seguimos o caminho acidentado percorrido por uma banda que se torna no farol do underground psicadélico londrino, que perde o seu líder, guitarrista e principal compositor, e que, contra todas as expectativas, consegue reinventar-se e tornar-se maior ainda. Não por acaso, esta história termina no momento em que os Pink Floyd se preparavam para começar a trabalhar em Dark Side of the Moon, o álbum que os transformou, definitivamente, numa das bandas mais populares e influentes à escala global.

Pink Floyd — The Early Years começa então com a história de uns outros Pink Floyd. Por um breve momento, foram uma banda de singles que fez chegar aos lugares cimeiros das tabelas britânicas uma pop deliciosamente subversiva. Arnold Layne e See Emily play são obra de um músico genial em estado de graça. Era Syd Barrett a guiar os companheiros de banda por um mundo feito de fantasia e de invenção, voz vinda de um lugar mágico e até então inacessível — “you’ll lose your mind and play, free games today”, como cantam em See Emily play. Barrett, tão devoto de Lennon (e o humor não o esconde), quanto de Lewis Carrol e Lord Byron, era, neste período inicial, o guia incontestado, aquele que conduzia a experimentação em estúdio. Era o inventor dessa colisão inesperada entre contos infantis e ambições cósmicas; entre os velhos contos folk e a modernidade dos estúdios de gravação (ouçamos a versão alternativa de Matilda mother, canção do álbum de estreia The Pipper At The Gates of Dawn); entre free-jazz, pop desconcertante e ruído eléctrico como mantra zen — “sons etéreos muito estranhos”, assim apresenta o apresentador de rádio a versão de “Flaming” incluído no duplo CD.

Barrett, como sabemos, eclipsar-se-ia vitimado por um cocktail tóxico de LSD, incapacidade em lidar com a pressão de uma banda a caminho do estrelato e problemas psiquiátricos larvares que o contexto tornou demasiado visíveis — Jugband blues, a sua última contribuição para a banda e que encerra o segundo álbum, Saucerful of Secrets, é trágica autobiografia, é a balada de um fantasma que a fanfarra final torna mais triste, infinitamente dorida (“and exactly is a dream? / and what exactly is a joke?”). A banda, com o amigo de infância David Gilmour no seu lugar, sabemos igualmente muito bem, continuaria. E, experimentando, trabalhando arduamente, falhando e voltando a tentar procurou uma linguagem, uma marca autoral necessariamente diferente daquela criada pela visão de Barrett. Essa demanda de Roger Waters, Nick Mason, Rick Wright e David Gilmour é a parte mais interessante da viagem que são estes “Early Years”.

Ouve-se In the beechwoods, single deixado incompleto (Barrett nunca chegou a gravar voz para o tema) e temos apenas uma curiosidade para completistas da banda. Ouve-se Point me to the sky e deparamo-nos com uma tentativa de criar singles de acordo com as linhas psicadélicas anteriores, sem grande sucesso. Os Pink Floyd iriam redescobrir-se e reinventar-se no momento em que cortam definitivamente amarras com o passado próximo — tinham que o fazer, como o demonstra a pobre versão de Interstellar overdrive aqui incluída, gravada ao vivo no Paradiso, em Amesterdão, em que a liberdade experimental, a urgência e fluidez do original, que tinha a absurdamente imaginativa guitarra de Barrett como protagonista, se mostra incapaz de tirar os pés do solo e partir galáxia fora (os talentos de Gilmour eram definitivamente outros, como se comprovará).

À medida que se vai definindo o tom do discurso — uma dor existencialista, profundamente melancólica, que só consegue encontrar refúgio na infância perdida, como ouvimos em Point me to the sky ou na magnífica Embryo —, a banda persegue folk pastoral de um romantismo tocante (Cymbaline e Green is the colour, ambas da banda-sonora de More, filme de 1969 de Barbet Schroeder,  ou Grantchester meadows, de Ummaguma, duplo álbum do mesmo ano, são exemplos magistrais disso mesmo), investe por um space-rock deliciosamente dramático (o sinistro Careful with that axe, Eugene continua uma peça admirável), flirta com o folk-rock na banda-sonora de Zabriskie Point, de Antonioni, e começa, pouco a pouco, enquanto as experiências se sucedem (space rock e música concreta na versão para a BBC de Embryo; jam blues-rock, com Gilmour sem rédeas, na de Atom heart mother no festival de Montreux) a chegar à máquina de precisão que seriam os Pink Floyd a partir de Dark Side of The Moon (ouvimos The riot scene, de Zabriskie Point, conhecida anteriormente entre os Floydianos como The Violent sequence, e deparamo-nos com Us and Them).

No que aos arquivos dos Pink Floyd diz respeito, este período inicial será o mais interessante de revisitar e de acompanhar. É o período em que a banda se ergue ao topo e se desfaz no processo. É o momento, em que, a partir dos escombros, é obrigada a descobrir o que pode e quer ser. Nem tudo é perfeito, nem tudo é musicalmente satisfatório, mas a riqueza da viagem e o fervor da demanda artística valem cada minuto. 

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