A coragem de deixar a primeira impressão

A coragem e ambição que Guterres pôs no seu discurso mostram que levou a sério uma sua velha lição.

O primeiro grande desafio de António Guterres na ONU não estava escrito no seu discurso, mas ficou evidente logo depois da sua cerimónia de juramento, nesta segunda-feira em Nova Iorque. Uma leitura transversal dos grandes jornais de referência mundiais mostrava o lugar a que foi submetido o cargo de secretário-geral, depois do mandato de Ban Ki-moon: uma nota de fim de página (abaixo de Ronaldo e do Papa Francisco, no caso do Le Figaro; em lugar nenhum, no caso do El País ou do New York Times, só para dar três exemplos aquém e além do Atlântico).

Guterres não ignora a quase irrelevância mediática do cargo que vai assumir a 1 de Janeiro. E sabe também que sem devolver essa centralidade ao cargo terá muito menos hipóteses de fazer vingar o seu estatuto e trazer eficácia prática ao seu mandato. 

Não foi por acaso que, neste seu primeiro discurso, o novo secretário-geral tivesse começado por olhar para dentro de casa. Explicando que chegou a hora de a ONU “reconhecer as suas insuficiências", avisou que é preciso "reformar o modo como funciona”. E atreveu-se a sinalizar um caminho: "Devemos focar-nos mais nos fins e menos nos processos, mais nas pessoas e menos na burocracia.” Conhecendo nós a organização, sabendo ele os cantos da casa, a tarefa do português não se avizinha fácil. Mas a prova de que Guterres tem caminho aberto veio do convicto aplauso que, neste trecho da sua intervenção, recebeu da assistência. 

Perante os 193 países que preenchem as cadeiras da assembleia geral, Guterres traçou um retrato lúcido do mundo que receberá nas mãos. Com muita diplomacia, sublinhou que “o fim da Guerra Fria não foi o fim da história”, que “os conflitos tornaram-se mais complexos e interligados do que antes" ou que a globalização trouxe progresso, mas também “fez aumentar as desigualdades". Com mais atrevimento, apontou o distanciamento das lideranças, colocou a palavra "verdade" no centro de uma nova ordem mundial. E ainda anotou a irreversibilidade do combate às alterações climáticas, uma directiva mais difícil de vencer depois da eleição de Donald Trump como novo Presidente dos EUA (anote-se: o maior financiador de hoje e de sempre da ONU). 

Lido e ouvido o primeiro discurso de Guterres na "sua" ONU, lembramo-nos do que ele próprio, há pouco mais de 15 anos, disse a Durão Barroso na Assembleia da República: não há uma segunda oportunidade para deixar uma primeira impressão. A coragem e ambição que Guterres pôs no seu discurso mostram que levou a sério essa sua velha lição.

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