Tolstoi que me desculpe, mas a minha família é feliz e não é parecida com nenhuma

Tolstoi dizia que todas as famílias felizes são parecidas e que as infelizes são-no cada uma à sua maneira. É verdade, concordo, mas também é falso. Não é bem ser verdadeiro ou falso, é mais ser como uma ampulheta, é só virar do avesso que a areia cai sempre. Tolstoi que me desculpe. Mas não conhecia a minha família.

A verdade é que tenho família, e muita família, mas não vive na mesma cidade do que eu. Está longe. Assim sendo, quando saio do jornal, vou muitas vezes aos cafés da minha rua. Se pensar nisto de ter uma família e um quotidiano, as pessoas que habitam os cafés da minha rua tornaram-se numa espécie de família. Já estão à minha espera.

Vou variando de cafés, na minha rua há vários. Mas é tudo a mesma família, pelo menos na minha cabeça que sempre gostou de inventar coisas. Num dos cafés, o senhor impinge-me sopa, acha que estou magra. Noutro, pergunta-me porque não como a salada. Noutro, ela fala-me do casamento. Noutro, pergunta-me se estou triste.

– Não, só cansada.
– Mas está com cara triste.
– Mas isso é a minha cara.
– Não, não é.
(Parece ou não parece a minha mãe?)
– Se calhar é sono. Veja lá se dorme.
(Parece ou não parece a minha avó?)

Os outros falam dos filhos, dos casamentos, dos afilhados, do cão e do gato. Eu também posso falar do gato, tenho dois. Mas depois posso falar das noites nos cafés da minha rua. São quase sempre só homens e eu, não percebo porquê. Chamam-me menina, é uma enorme vantagem ter uma família que nos conhece tão bem, mas não sabe o nosso nome.

Os meus amigos perguntam-me:
– Não te importas de jantar sozinha?

Mas eu não sei responder, porque a pergunta não faz sentido. Não, não me importo, mas não sinto que esteja sozinha, embora o esteja na mesa, é verdade (mas também é falso, é só virar a ampulheta). Às vezes, até invento desculpas para não estar com os meus amigos e jantar sozinha na esplanada. Disse sozinha? Não, não disse.

Estou acompanhada por mil pensamentos e personagens que vejo, entretida a imaginar o resto. Não há melhor companhia. Quem é o dono da loja de tralhas em segunda mão? A minha família até tem um animal de estimação, o gato Simão que aparece e desaparece, é como eu, tinha casota, mas não sei bem quem é dono. Há o senhor que me vê na televisão e me dá os parabéns.
– Mas não faço anos.

Descobriu que sou jornalista, algo que sempre me esforcei por esconder. Não devemos dizer tudo à nossa família.

Esta minha família é diferente de todas, e Tolstoi que me desculpe, mas é feliz à sua maneira.

Esta é que é mesmo daquelas famílias em que podemos estar em silêncio e isso não ser um incómodo. Na minha rua já toda a gente sabe que gosto de estar calada. Fazem-me algumas perguntas, mas não insistem em conversetas. Já nos conhecemos muito bem, todos a chegar ali depois do dia de trabalho.

Eles falam, gesticulam, bebem, discutem política e futebol e eu nem nas conversas sobre poesia me meto. Estou numa mesa como se estivesse no meu quarto, não gosto que abram a porta sem bater primeiro.

No Verão, à noite, vou para uma das esplanadas ler. Uma vez, um estranho (não vive na rua) pediu para se sentar na minha mesa e não parou de me pedir desculpa porque não queria incomodar. É claro que incomodou. No fim, a menina do café disse-me:
– Para a próxima, diga que não quer que se sente na sua mesa.

Ela já me conhece de ginjeira.

Só quero ficar por ali a ouvir a conversa dos outros, como diz a música. Vejo quem bebe até mais tarde. A rapariga que se zanga com o namorado e sai de casa de pijama para comprar tabaco na mercearia. A “solenidade calada e digníssima” do amuo dela, como diria Lobo Antunes. O namorado aparece depois, faz-lhe uma festa no cabelo. Até me comovo às vezes com esta minha família. Percebo que o pior já passou, mas não sei o que aconteceu entre os dois. A minha família está cheia de desconhecidos. Mas acho que isso acontece em todas as famílias.

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