A América depois de Trump

Vença Trump ou Clinton, abre-se uma nova fase na política americana. E não só.

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Nos últimos dias, na crispação do fim de campanha, os colunistas americanos interrogaram-se sobre o que aconteceu: tentar perceber o “trumpismo” e, sobretudo, imaginar o que será a América amanhã. Havia um relativo consenso: “Mesmo que Trump perda por muito, a cólera permanecerá.” E está aberta uma funda crise nas instituições.

Esta campanha foi o exemplo de como uma sociedade se pode desfazer, resumiu David Brooks no New York Times. “Diria que houve uma revolução sociológica, uma advertência moral e um aviso político.” Que descobrem os americanos? “Somos uma sociedade mais dividida do que concebíamos. Os mais educados e os menos educados vêem o mundo e votam de modos diferentes. Assim fazem homens e mulheres, negros e brancos, nativos e imigrantes, jovens e velhos, urbanos e rurais. [...] A democracia não é vista como uma batalha de ideias e um processo de deliberação individual. As campanhas empurraram-nos para os nossos refúgios tribais.”

A América sempre foi uma sociedade de muitas comunidades e as linhas de voto sempre estiveram ligadas à geografia, à história e à comunidade. A novidade é a extrema polarização, que rasga o corpo político em facções irreconciliáveis, anulando a possibilidade de debate.

A “ansiedade económica” dos trabalhadores brancos — os “angry white men” —, a “revolta contra a globalização” e a cólera contra um “sistema corrupto” forneceram a Donald Trump o terreno para a vaga populista. No entanto, o populismo não é um efeito mecânico do económico. A economia americana parece próspera, o que cresceu foi a desigualdade. E, diga-se, os mais pobres votam em Clinton.

O risco de contágio

O populismo tem principalmente que ver com frustrações, valores, identidades e, muito decisivamente, com a relação entre governantes e governados. Quando se transforma em movimento, muda de natureza: no caso americano, a mais grave ameaça diz hoje respeito às instituições.

É neste plano que foi decisiva a intervenção de Trump. Criou a ideia de que, ao contrário dos políticos do “sistema”, ele é o que ouve e fala ao povo. A partir daí, começou a escalada contra as instituições e as regras democráticas. O mais grave não ameaçar meter na cadeia a sua concorrente ou a reintrodução da tortura. Fez pior: manifestou um radical desprezo pelas regras da Constituição. Pôs em causa a própria validade da eleição. Não reconhece um limite aos seus poderes. “Legal” é aquilo que fizer. É aqui que começaria o risco de uma deriva autoritária.

A América passou por muitas crises. Teve uma guerra civil. As suas instituições sempre resistiram. Creio que voltarão a resistir, independentemente de quem tenha sido eleito. Não é questão de fé. É que há uma outra América — e maioritária. Em caso de confronto constitucional, a coligação de Trump não resistiria, apenas estilhaçaria o Partido Republicano.

Vença Trump ou vença Clinton abre-se uma nova fase. Os cenários serão diferentes, consoante vença um ou outro, ou ainda se Clinton vencer sem maioria no Senado, o que a condenaria à inacção e bloquearia por completo o sistema político.

Independentemente de quem ganhe, só os próximos meses nos dirão se o “trumpismo” foi uma anomalia ou se será a nova norma do partido de Lincoln, anota o politólogo Peter Wehner. Mas tudo indica que durará. Repare-se que, se tiver ganhado, Hillary Clinton não poderá fazer política da “mesma maneira”. A prioridade será refazer as regras do corpo político americano. Não lhe bastará “ser competente”, terá de diminuir o fosso “entre os irreconciliáveis”.

Os europeus têm olhado sobretudo as consequências da política externa de Trump. Estas eleições não são apenas para eleger um presidente mas para definir o que a América vai ser. Pensemos, por um minuto, na influência universal ou no poder de contágio que os EUA têm. Se o “trumpismo” se tornar moda na América, os populismos europeus mudarão de natureza e ambição.

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