A encruzilhada económica Clinton-Trump na História da América

O economista Ricardo Cabral analisa, para o PÚBLICO, os programas eleitorais na área da economia de Hillary Clinton e Donald Trump.

O ponto de partida

Antes de comparar alguns temas do programa económico dos dois principais candidatos à presidência dos Estados Unidos da América (EUA), começo por analisar, ainda que de forma breve e simplificada, alguns indicadores da situação económica dos EUA, que necessariamente condicionam a acção do próximo Presidente.

Como se constata no gráfico, relativamente ao final de 2014, a OCDE estima a dívida pública total das Administrações Públicas dos EUA em 124% do PIB. As estimativas do Departamento do Tesouro dos EUA sugerem que essa dívida seria de 125% do PIB no 2.º trimestre de 2016 (estatísticas SDDS Plus do FMI).

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Uma parte dessa dívida é detida pelo Governo federal, como se explica abaixo. Estimo que a dívida pública dos EUA “detida pelo público” (que nos EUA se considera sector privado, Reserva Federal e resto do mundo), líquida de activos financeiros, seja de cerca de 74% do PIB nos EUA, ou seja, muito abaixo da dívida total.

Isto ocorre porque nos EUA os fundos da Segurança Social detêm uma percentagem significativa da dívida federal (~29% do PIB), muito mais elevada do que em Portugal (~6% do PIB). O Governo federal possui ainda um programa de empréstimos a estudantes de ensino superior de dimensão significativa. A dívida total de cerca de 40 milhões, de actuais e antigos estudantes do ensino superior, representa cerca de 7% do PIB e o Governo dos EUA cobra uma taxa de juro nesses empréstimos superior ao seu custo médio de financiamento, i.e., obtém receitas com esse programa de empréstimos. O programa é também relevante para efeitos de comparabilidade, porque a dívida pública contraída para financiar os empréstimos aos estudantes é contabilizada nas estatísticas da dívida pública dos EUA.

De salientar que o volume de dívida pública federal, monetizada pela Reserva Federal, representava cerca de 14% do PIB no final de 2014.

A despesa pública com juros, líquida de receitas com juros, representava 1,9% do PIB nos EUA, no ano fiscal 2015/2016, em contraste com os 4,3% do PIB (sem considerar receitas com juros, pouco significativas no caso português) previstos para Portugal em 2016 (embora este indicador não seja inteiramente comparável, uma vez que o governo dos EUA obtém rendimentos de juros comparativamente elevados). O Congressional Budget Office estima a taxa de juro líquida da dívida federal detida pelo público em 1,8%, por conseguinte muito inferior à da dívida pública portuguesa (3,5%).

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A despesa pública (Governo federal, estadual e local) representa em 2016 cerca de 35% do PIB nos EUA e 46% do PIB em Portugal. Os EUA têm registado défices públicos elevados em resultado da política orçamental expansionista adoptada nos EUA (ver gráfico).

É de esperar, contudo, que, mesmo sem alteração das políticas económicas, isto é, antes do efeito dos programas de Hillary Clinton ou de Donald Trump, o défice nos EUA se deteriore no futuro próximo.

A posição de investimento internacional [medida lata dos activos líquidos do país face ao exterior (passivos líquidos, se de sinal negativo)] dos EUA é de cerca de -44% do PIB no .2º trimestre de 2016. Os EUA apresentam um défice da balança corrente de cerca de 2,5% do PIB.

Do lado dos indicadores positivos, que traduzem os efeitos de uma orientação de política macroeconómica dos EUA oposta à seguida pela zona euro, é de realçar: a taxa de crescimento económico registada nos últimos anos e a taxa de desemprego (cerca de 5%), ambas muito mais favoráveis do que as taxas observadas na União Europeia e, em particular, em Portugal.

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Os dilemas económicos dos candidatos presidenciais

Qualquer dos candidatos enfrentará dificuldades na execução do seu programa em resultado dos significativos desequilíbrios orçamentais e macroeconómicos, dos enormes problemas sociais e dos conflitos militares internacionais em que os EUA estão envolvidos. De facto, as guerras iniciadas por George Bush Júnior no Iraque e no Afeganistão e seus desenvolvimentos tornaram-se os conflitos militares mais longos da História dos EUA e os seus custos acumulados directos, até à data, representam cerca de 10% do PIB, ou seja, cerca de um doze avos da dívida pública total.

A despesa orçamentada em 2016/2017 para a “guerra contra o terror”, apesar de ter diminuído significativamente face a anos anteriores, ainda representa cerca de 0,4% do PIB ($74 mil milhões).

O orçamento militar total para 2016/2017 é de $774 mil milhões (4,2% do PIB), e 10% deste montante representa despesa com cuidados de saúde para os veteranos de guerra. O orçamento militar, e o próprio sector militar, continua sob pressão em resultado do esforço militar em diferentes teatros de guerra nos últimos 15 anos.

Por outro lado, os EUA têm sido, dos grandes blocos económicos, o único disposto a adoptar políticas expansionistas, sem se preocupar significativamente com o efeito nas suas contas públicas e endividamento externo. Em contraste, o mundo continua repleto de países e áreas económicas, em particular a zona euro e a China, que adoptam políticas mercantilistas, em que o objectivo parece ser obter excedentes externos significativos.

Tanto Hillary Clinton como Donald Trump nos seus programas dão sinais de que vão prosseguir uma política orçamental e monetária expansionista, o que é positivo porque não seria possível aos EUA ajustar as suas contas externas sem causar uma grave recessão num mundo cheio de “potências” exportadoras.

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As promessas de Hillary Clinton

O programa económico de Hillary Clinton parece o mais sensato e prudente. Embora enfatize temas e políticas importantes, muitas destas iniciativas são caracterizadas por alguma ambiguidade e falta de quantificação. Não obstante a estratégia do programa económico de Hillary Clinton seja menos arriscada, face ao orçamento actual, afigura-se que o seu maior risco reside precisamente aí: a maior parte das medidas propostas parece ser de dimensão demasiado modesta para fazer diferença significativa. Parece um orçamento de continuidade e de alteração apenas incremental.

As promessas que surgem mais quantificadas e concretas incluem a criação de um novo escalão do imposto sobre o rendimento singular, mantendo as restantes taxas marginais do ano fiscal 2016/2017. Contribuintes com rendimentos acima de 5 milhões de dólares por ano passariam a ter uma taxa marginal de imposto de 43,6%. Por outro lado, Hillary promete acabar com vários dos loopholes que permitem a fuga a impostos e adoptar uma nova “regra Buffett”: indivíduos com rendimento anual superior a um milhão de dólares por ano passariam a pagar, no mínimo, 30% de taxa de imposto sobre o rendimento singular (ou seja, a criação de uma taxa efectiva mínima). Também aumentaria os impostos sobre as grandes heranças, os impostos sobre as empresas e criaria um imposto especial sobre os bancos com mais de 50 mil milhões de dólares de activos. Uma pequena redução das desigualdades entre os muito ricos e os mais pobres parece ser um dos objectivos da sua política fiscal.

O Committee for a Responsible Federal Budget (CRFB) estima que esses aumentos de impostos se traduziriam num aumento da receita de 1,25 biliões de dólares em 10 anos, i.e., cerca de 125 mil milhões de dólares por ano (0,7% do PIB), em média, face ao que ocorreria com as políticas actuais.

O mesmo comité estima que a despesa aumentaria 1,4 biliões de dólares nesse período. O CRFB prevê que o programa de Hillary Clinton resultaria num aumento do défice de 250 mil milhões de dólares em 10 anos, i.e., em média 25 mil milhões de dólares por ano (0,1% do PIB por ano) – ou seja, o programa de Hillary Clinton tenderia a ser ligeiramente expansionista.

Em relação ao aumento da despesa, destaca-se um programa de despesa em infra-estruturas de cerca de 275 mil milhões de dólares, ao longo de cinco anos, i.e., 0,3% do PIB por ano. Parece, todavia, insuficiente e pouco ambicioso.

De destacar ainda um programa para apoiar a frequência do ensino superior por parte dos americanos de mais baixos rendimentos (New College Compact), mas que se figura de dimensão insuficiente (35 mil milhões de dólares, cerca de 0,2% do PIB, por ano) face à escala do problema (um volume de empréstimos acumulado para estudantes do ensino superior de 1,2 biliões de dólares).

Mas em relação aos sete programas de despesa de Hillary Clinton em que o CRFB identifica os custos, estamos na realidade a falar de cerca de 20 mil milhões de euros de despesa, em média, por programa e por ano, i.e., 0,1% do PIB, ou seja, peanuts.

O programa económico de Hillary Clinton é ambíguo e pouco específico em alguns temas, nomeadamente os relacionados com a despesa militar e política para este sector e também em relação ao programa de reforma da Segurança Social.

No entanto, o programa de reforma da Segurança Social parece-me o mais interessante e visionário dos programas de Hillary e potencialmente o que terá maiores efeitos económicos e sociais. Numa altura em que em Portugal se fala em introduzir a condição de recursos, reduzindo o acesso às pensões mínimas, Hillary parece propor a reintrodução de uma pensão mínima nos EUA (existia até 1981, desde então existe só uma pensão mínima especial com condições de acesso muito restritivas), sendo claro que não será introduzida uma condição de recursos no sistema de pensões americano. Propõe o alargamento da base de receitas da Segurança Social (pensões), dando a entender que seria aumentado ou mesmo eliminado o tecto máximo para as contribuições e que seriam englobados rendimentos actualmente não sujeitos a essas contribuições.

As promessas de Donald Trump

Se o programa de Hillary peca, talvez, por ser demasiado incremental, prudente e modesto, o programa de Donald Trump quase não parece deixar pedra alguma no mesmo lugar. É menos específico (e por conseguinte muito mais ambíguo) do que o programa de Hillary Clinton.

Propõe uma enorme redução das taxas de impostos sobre o rendimento singular para todos os escalões e sobre as empresas, que beneficiariam proporcionalmente mais os americanos com maiores rendimentos e património. Reduziria a progressividade do imposto sobre o rendimento singular. Acabaria com o imposto sobre heranças.

Trump defende a renegociação de acordos de comércio internacional e a imposição de taxas aduaneiras muito significativas com alguns dos principais parceiros comerciais dos EUA (35% em bens importados do México e 45% em bens importados da China) que provavelmente, mesmo que fossem possíveis à luz dos acordos internacionais dos EUA, conduziriam a retaliações comerciais.

Trump parece defender uma política internacional na tradição mais isolacionista, sugerindo uma alteração radical da política e estratégia militar dos EUA. A sua posição de que a NATO já não é necessária, ou de que os seus parceiros na NATO têm de suportar uma maior fatia dos seus custos é disso sinal.

Trump defende um programa de investimento em infra-estruturas de um bilião de dólares em dezanos, ou seja, cerca do dobro de Hillary Clinton (que apresenta um programa a cinco anos). Só que o programa de investimento em infra-estruturas de Donald Trump parece ser uma combinação de parcerias público-privadas com plano Juncker, em que o investimento privado seria realizado com recurso a créditos fiscais públicos. Aparenta ser substantivamente mais fraco do que o programa público de investimento em infra-estruturas de Hillary Clinton.

Donald Trump prevê um aumento mais significativo dos benefícios para os veteranos de guerra dos EUA (Veteran Affairs), com o CRFB a estimar um aumento da despesa pública de cerca de 50 mil milhões de dólares por ano, i.e., cerca de 0,3% do PIB, o que se afigura uma medida positiva e com significado.

Em diversas intervenções Donald Trump sugeriu que iria reduzir de modo substancial a despesa com o Departamento de Educação e com a Agência de Protecção do Ambiente, dando quase a entender que iria “acabar” com esses organismos federais, no que se afigura ser duas medidas extremas e radicais com graves consequências. Também se propõe acabar com o “Obamacare”.

As propostas de Trump em relação à imigração, sobretudo proveniente do México, são radicais e pouco razoáveis.

Trump parece também muito mais propenso a alterar o statu quo em relação à política monetária, sendo mais provável que esta deixasse de ser “independente” sob a sua presidência. Provavelmente, substituiria Janet Yellen à frente da Reserva Federal.

Finalmente, Donald Trump também chegou a defender a necessidade de renegociar a dívida pública dos EUA para posteriormente recuar, mas não deixa de ser interessante que tenha trazido essa discussão para a praça pública.

O programa económico de Trump parece ser muito mais expansionista do que o de Hillary Clinton em resultado do enorme “choque fiscal”, que faz lembrar os supply-siders de Ronald Reagan. O CRFB estima que sobretudo a redução das taxas de imposto sobre o rendimento singular e sobre empresas resultariam numa queda de receitas fiscais de 9,3 biliões de dólares em dez anos e num aumento do défice de 11,5 biliões de dólares em igual período – ou seja, de acordo com estas estimativas, o défice federal deteriorar-se-ia em cerca de 1,2 biliões de dólares (6,5% do PIB) por ano, o que se afigura impensável.

Nas entrelinhas

O que não está escrito em nenhum programa é que, na realidade, o poder presidencial nos EUA para alterar a receita e a despesa está muito condicionado pelo poder legislativo (Congresso e Senado dos EUA).

Donald Trump é um outsider face à máquina do Partido Republicano e está em choque com o pensamento da maior parte dos representantes no Congresso deste partido em relação a numerosas questões. Enfrentaria enormes resistências no Congresso para lançar várias das suas políticas, nomeadamente o choque fiscal.

Um problema similar coloca-se com Hillary Clinton, que enfrenta muitos “anticorpos” no Congresso. Contudo, como o programa de Clinton é mais incremental, é provável que fosse mais bem sucedida nas suas negociações com o Congresso.

Por outro lado, se um presidente Trump agisse em coerência com o que tem vindo a dizer em campanha, é possível que Trump promovesse uma política internacional mais conducente a um desanuviamento das relações com a Rússia e com a China (no que respeita à disputa em relação ao mar do Sul da China). Parece também provável que o posicionamento mais isolacionista de Trump resultasse mais rapidamente num fim do remanescente da presença militar americana no Afeganistão e no Iraque, bem como numa redução mais acentuada do número de bases militares dos EUA no mundo, com a concomitante redução da despesa militar dos EUA.

Mas parece igualmente provável que as propostas políticas já enunciadas por Trump, que implicam alterações profundas no funcionamento do governo e da economia dos EUA, mesmo que não concretizadas, provavelmente resultariam numa maior instabilidade interna nos EUA.

Hillary Clinton, em contraste, é vista como “um falcão” (hawk) em questões de política externa, tendo tido um papel importante em relação às políticas no Médio Oriente bem como no mar do Sul da China. Por conseguinte, seria de esperar continuidade ou até algum agravamento em relação à política internacional adoptada pela Administração Obama e uma expansão do orçamento militar.

Enfim, amanhã, quarta-feira, conheceremos quem irá presidir aos destinos da nação mais poderosa do mundo nos próximos quatro ou oito anos. Espera-se que o futuro presidente saiba honrar a confiança nela/nele depositada. O Mundo precisa de uma Presidência dos EUA competente, generosa e visionária.

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