ONU: os ideais e a realidade

A ONU é um conceito genial para preservar a paz no mundo. Como não tem sabido fazer.

O mundo tende a não valorizar devidamente o facto de a ONU ter conseguido, ao longo das décadas, induzir uma notável constelação de organizações especializadas que têm prestado espantosas contribuições à Humanidade. Exemplos destacados são a Organização Mundial de Saúde (OMS), a UNICEF, a FAO ou a UNESCO. Talvez a mais importante realização tenha sido a forma heróica como médicos e técnicos da OMS conseguiram erradicar do mundo a tenebrosa varíola.

Mas a ONU, em si mesma, apresenta um balanço que, embora positivo, encerra uma pungente apatia em momentos críticos da segurança internacional. Não podemos ignorar o objectivo central que inspirou a criação desta organização. A ONU foi constituída após os horrores da Segunda Guerra Mundial e o seu propósito foi o de evitar que o planeta sofresse novas guerras. A Carta das Nações Unidas é longa, mas imediatamente o seu artigo 2.º estabelece a função estruturante desta organização, que é a de “preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra”. A ONU nasceu para evitar o drama das guerras.

Todavia, desde que a ONU foi formada registaram-se mais de 240 conflitos armados, em que morreram mais de 40 milhões de seres humanos, inclusive em genocídios inimagináveis. Não se podem pedir milagres à ONU e muitas situações configuram desafios difíceis para uma entidade que não possui forças militares próprias e que, com dificuldade, mobiliza as de países membros, colocadas sob a sua égide. Mas somam-se pesadelos que revelam falta de coragem e de liderança nos momentos dramáticos.

A gigantesca burocracia que esta organização consolidou produz uma infinidade de reuniões do Conselho de Segurança e de declarações e apelos cujo efeito no mundo real é reduzido, enquanto populações morrem. A sua máquina humana, que inclui excelentes colaboradores, produz toneladas de documentos que quase ninguém lê e que frequentemente estão desfocados dos desafios substanciais. Numa conversa, um dos principais responsáveis da ONU um dia desabafou, referindo-me que “a ONU é como um superpetroleiro em que é necessário um esforço sobre-humano para mudar a rota um único milímetro”.

Esperava-se que a ONU constituísse uma protecção dos povos em perigo. Apesar das limitações de recursos, erros gravíssimos sucedem-se. Durante o genocídio no Ruanda, em que 800 mil civis foram chacinados com catanas em 100 dias, tropas da ONU receberam instruções para não intervir. Um contingente de militares belgas sob comando desta organização estava aquartelado na Escola Técnica da capital, Kigali. Em desespero, 2000 civis, incluindo muitas mulheres e crianças, pediram que os deixassem entrar no recinto da escola, para estarem protegidos pelos militares, enquanto no exterior da vedação se acumulava uma multidão de inimigos que brandiam catanas e esperavam para os matar. Mas responsáveis nos escritórios da ONU ordenaram ao contingente militar que abandonasse as instalações da escola e nem o apelo em pânico dos soldados conseguiu demover as chefias, que foram informadas de que milhares de cidadãos seriam de imediato chacinados. Revoltados, os militares foram obrigados por políticos a abandonar os civis à chacina. Logo que os militares passaram os portões da escola entraram hordas bárbaras que cortaram, pedaço a pedaço, 2000 mulheres, crianças e homens indefesos. Não será monstruoso?

Na Bósnia, Srebrenica foi declarada “Área Segura” pela ONU, sob sua protecção, mas esta não impediu a execução metódica de oito mil homens em dois dias. No conflito do Congo, onde morreram mais de quatro milhões de civis inocentes sem que noticiários ou políticos se preocupassem visivelmente, foram chacinadas mulheres e crianças a alguns metros de soldados internacionais da ONU, armados. Esses inocentes gritavam por socorro aos militares, enquanto eram cortados em pedaços e crianças-soldado levavam muitos desses pedaços como recordação. As tropas presentes diziam, simplesmente, que não era seu mandato intervir.

Em quase todo o mundo é considerado criminoso aquele que, perante perigo de outro cidadão, não lhe presta a assistência possível. Haverá alguma justificação aceitável para pessoas em representação da Humanidade assim se demitirem?

Depois de países destruídos e populações dizimadas em sofrimento atroz, enviam-se militares em operações de “manutenção de paz”, uma designação elegante quando já passou a fase de combate e outros, ou a destruição, “fizeram a paz”. Será prestigiante? Imagine-se que, numa das nossas ruas, polícias impassíveis observam assassinos a massacrar inocentes, esperando pela calma dos mortos para entrar em cena com ambulâncias e armas para “manter a paz”. Seria moral?

Desta fragilidade da ONU decorre a percepção de que o multilateralismo não protege, justificando que, unilateralmente, alguns o façam, bem ou mal.

Quando se equaciona um novo secretário-geral deve-se compreender que não é aceitável cultivar a elegância de evitar os problemas difíceis quando populações enfrentam o horror. A ONU é um conceito genial para preservar a paz no mundo. Como não tem sabido fazer.

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