Nelson Évora sem talking heads

O que faz um atleta ser tão competitivo? Descobrir quem são estas pessoas únicas no mundo deu-nos o segundo filme de João Pedro Plácido.

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João Pedro Plácido tinha prometido que não fazia mais filmes depois de Volta à Terra, uma primeira obra que venceu a competição nacional do DocLisboa 2014 e fez uma carreira impressionante nos festivais internacionais. Mas aqui está ele quase a partir para o Rio de Janeiro, onde vai acabar um documentário sobre Nelson Évora, o campeão olímpico que acompanha diariamente há dois meses.

Será uma correria porque a ideia é que o filme passe na SIC logo depois da final do triplo salto, marcada para 16 de Agosto. A revista Visão anunciou que será exibido neste canal a 19 e 20 de Agosto, em dois episódios de 25 minutos, mas a SIC não confirmou ao PÚBLICO as datas porque o documentário ainda não está terminado.

“A ideia era ir para o Rio mais cedo, mas temos 50 minutos de filme para fazer o percurso de um atleta que tem uma carreira longuíssima e os últimos Jogos Olímpicos não definem nem a carreira nem a vida de Nelson Évora.” O realizador, que também é director de fotografia, vai reunir-se com Nelson Évora no Brasil no dia 10. “Honestamente,  o núcleo do filme já está filmado.” O que se vai captar nos próximos dias é a história que toda a imprensa portuguesa vai contar. “A nós não nos interessa tanto evocar os Jogos Olímpicos, que é a actualidade, mas reflectir o caminho até lá. O que está por trás desse caminho, o que é que foi feito para estar ali.”

Se o filme é realizado por João Pedro Plácido, quem o produz é Ruben Alves, o realizador de A Gaiola Dourada, juntamente com Duarte Neves e Christophe Fonseca – autor do documentário dedicado a Amadeo de Souza-Cardoso e recentemente estreado para coincidir com a exposição em Paris. Foi Ruben Alves que pediu a Plácido para filmar, depois dos primeiros contactos da agente do atleta com a produtora Imagina.

“Ele queria fazer alguma coisa para deixar: é muito importante para o Nelson Évora mostrar o esforço de um atleta a trabalhar. Se compararmos a visibilidade do minuto do triplo salto com a de um futebolista, há uma disparidade e as pessoas não sabem o esforço que representa”, diz o realizador luso-francês. “Mas o que interessa é sobretudo a história dele. Mostrar que por trás disto tudo há um rapaz com uma vida, alguém que luta quando toda a gente diz que está acabado. Ele querer ser alguém que nunca desiste.”

O atleta conquistou a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de 2008, mas uma série de lesões obrigou-o a faltar às competições seguintes, a ter de reaprender muita coisa, até chegar novamente ao ouro e ao bronze nos campeonatos europeu e mundial de atletismo do ano passado.

Sem pose

É muito fácil trabalhar com Nelson Évora, conta o produtor Ruben Alves, que não vai sair de Paris, onde vive, para os últimos dias de filmagens no Rio de Janeiro. Mas foi preciso o atleta esquecer a câmara e a equipa tornar-se quase invisível, “para não perturbar os treinos, porque ele está concentradíssimo  e é importantíssimo o que está a fazer agora”.

O documentário quer ver como é que “uma vida pessoal se reflecte numa vida de desportista”, mas sem pose: “Há um Nelson Évora para os media, para o marketing, isso faz parte, mas este documentário não é sobre a marca Nelson Évora.”

Que Nelson Évora é então este que João Pedro Plácido está a filmar? “O que mais me interessa é conhecer o Nelson Évora que as pessoas não conhecem, que as pessoas não viram. É um filme em que procuro mais sensações, emoções, do que informações. Quero retratar o que é que está por trás de um atleta, o lado do sacrifício, da perseverança, da paixão. Esse sacrifício é algo de que se fala muitas vezes, mas pouca gente o vê.” Há o treino, claro, as conversas com o biomecânico, com o treinador, com o amigo de infância, mas também com a mãe biológica, que está em Abidjan.

O realizador diz que o que o levou a fazer este filme e a aceitar o convite de Ruben Alves foi a vontade de perceber o lado não público do atleta de alta competição. “Estamos a falar de uma quantidade mínima de pessoas no mundo.” Nelson Évora, como qualquer figura pública, também construiu uma personagem: “Aprendeu a defender-se dos media, das pressões. Mas houve uma frase que me disse uma vez e que me impressionou: ‘Com o sucesso que tive eu não mudei, mas as pessoas à minha volta mudaram'. É verdade que há uma parte do Nelson que é o Nelson, depois ao lado há o Nelson Évora.”

Da primeira vez que falou com o atleta, logo no primeiro minuto de conversa, João Pedro Plácido disse-lhe que não ia fazer entrevistas e que não queria talking heads: “Sou o João Pedro, faço filmes. Normalmente vou ao cinema, não vejo televisão. Não gosto de reportagens, porque acho que muitas vezes não vão ao núcleo das coisas. Não me interessa filmar aquilo que toda a gente já filmou. Portanto, quero filmar-te a acordar, quero filmar-te na casa de banho, quero filmar-te no teu íntimo. E se não for por aí não me interessa.”

Este filme, sublinha o realizador, também é um projecto do atleta, que nasce da vontade do próprio Nelson Évora. E João Pedro Plácido acha que chegou a esse íntimo. “Atravessei fases mesmo muito más agora no campeonato da Europa, em que ele teve um resultado que quase nunca tinha tido. Há oito anos que não tocava tão em baixo. É uma altura em que ele se isola. Só mesmo ali um núcleo de cinco pessoas é que lá chega. Eu disse-lhe: ‘Sei que queres estar sozinho, mas agora é que conta’. Ele respeitou o meu trabalho, o que queríamos fazer.”

O objectivo de Nelson Évora, dizem realizador e produtor, é deixar aos futuros atletas um legado sobre o trabalho que desenvolveu com o treinador João Ganso. “Por isso, eu disse-lhe: ‘Por muito que te custe, e que estejas com o ego mesmo lá em baixo, agora temos de tocar na verdade.’”

Para já, o que mais surpreende o realizador é o desafio constante de alguém que está em competição com ele próprio. “Assisti à luta que foi mudar a sua forma de corrida, a sua fórmula mágica, aquilo que ele é instintivamente. Vi-o a alterar isso para conseguir um melhor resultado e piorou as marcas. Mas ele prefere sair da sua zona de conforto, continuar a surpreender-se, do que usar uma fórmula pela qual já não tem fascínio.”

A essência de Nelson Évora é “vincit qui se vincit”: vence quem se vence. “Perguntava-me a mim próprio porque é que os atletas são tão competitivos. As crianças que estão a aprender a andar caem e levantam-se. Nenhuma criança deixa de se levantar depois de cair, mas nós, ao longo da vida, vamos deixando de levantar-nos. Foi essa persuasão de se vencer a si próprio que me inspirou. E depois uma postura muito justa para com os outros, porque não quer que os outros atletas saltem menos, mas que puxem por ele. É essa pessoa que é fascinante.”     

O filme, que na versão que passará na SIC terá 50 minutos, pode ser o início de algo maior. “Pode ir para sala [de cinema] daqui a quatro ou cinco anos, porque é um pouco injusto com mês e meio de rodagem contarmos [de forma tão abreviada] uma história que é tão extensa.” 

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