As andorinhas-do-mar

Olha-se para estas gaivinas e repara-se que nem reparam em nós. É um elogio fazer parte do pano de fundo.

Na Ria Formosa há muitas coisas e criaturas a conviver, dependendo umas das outras, sendo essa interdependência uma das maiores belezas.

Ao fim do dia, seguindo o vai-e-vem dos barqueiros que vão levar pessoas para a praia e trazer outras para terra, está uma dúzia de andorinhas-do-mar, de olhos fixos no resultado das águas remexidas pelos barcos e pelas hélices.

À maneira de falcões, pairam quando vislumbram uma presa e deixam-se cair a grande velocidade. A diferença é que as andorinhas-do-mar mergulham na água e nunca saem de lá sem ser com um peixinho no bico.

Pergunto se não falham uma vez por outra. Juraram-me que era impossível. Que trabalho tão difícil, pensei eu. É preciso saber voar, mergulhar dentro de água, apanhar o peixe sinuoso e levantar logo voo outra vez.

Olha-se para estas gaivinas e repara-se que nem reparam em nós. É um elogio fazer parte do pano de fundo.

Tenho a triste certeza que estamos a fazer muitas coisas para lhes dificultar e eventualmente tirar a vida mas, por enquanto, esta ilusão de estarmos presos num postal é quase reconfortante. A ignorância de cada um de nós, que nos permite inventar tantas ilusões, é sempre mais doce do que a mais bonita mentira que outros nos possam contar.

Invejo a atenção das gaivinas: estão tão concentradas que só devem sentir vazio à volta delas. Só os peixinhos da ria merecem o interesse delas. Os peixões da rua, entre os quais este palerma incapaz de identificar as gaivinas que o embasbacam, nem sequer merecem a designação de mirones ou figurantes. Nós somos os vultos coitados que precisam de um barco para atravessar a ria. Esses barcos são as bugigangas barulhentas que inquietam os peixinhos e, só por isso, têm direito a registo nos mapas piscatórios das gaivinas.

Os peixinhos nunca são grandes ou pesados de mais. Os falcões e as águias enganam-se muitas vezes. As gaivinas não têm esse luxo. Alimentam-se de peixinhos portáteis com características rigorosamente seleccionadas. Será por isso que nunca falham? A ria está cheia de peixes: devem ver passar muito peixe maior ou mais pequeno.

“Deixa-os passar. Deixa-os passar que não há-de tardar muito um que seja – exactamente – do tamanho que prefiro. E lá está ele. Lá vou eu. Ó que tédio ser sempre tão bom naquilo que faço…”

Sugerir correcção
Comentar