Sexo, política e jornalismo

Com três palavras apenas se descreve, resumidamente, o romance mais recente de Mario Vargas Llosa.

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Sexo. Política. Jornalismo. Com três palavras apenas se descreve, resumidamente, o romance mais recente de Mario Vargas Llosa (n. 1936): Cinco Esquinas. O sexo descrito chega a fazer-nos temer, inicialmente, que o autor de Conversa na Catedral tenha enveredado pelo erotismo acetinado e couché da indústria de best-sellers, e depois não melhora muito. A política é a dos anos de 1990, os da presidência de Alberto Fujimori no Peru, mas poderia ser de qualquer outra época ou latitude: manipulação, abuso, corrupção. O jornalismo é de faca e alguidar, e não é por causa da Internet. Junte-se-lhe o crime, capaz de aglutinar sexo, política e jornalismo como nenhuma outra peripécia, e um final feliz e apaziguador e teremos as outras duas “esquinas” deste romance (esclareça-se que o título do livro – publicado em Março passado nos países de língua castelhana e rapidamente, e bem, traduzido para português – não tem pretensões simbólicas ou alegóricas, denotando apenas um lugar concreto de Lima, a capital do Peru).

Temos, portanto, um divertido romance de 300 páginas que se deixa ler com fluência, e até com algum prazer, e que, não obstante, não deixa de ser um livro menor e perdulário. Mas um premiado pelo Nobel da Literatura (e o escritor peruano recebeu-o em 2010) não tem menos direito do que qualquer outro a limitar-se a entreter os seus leitores. E, no entanto, quando Vargas Llosa se lembra do ofício, relembrando-nos quão competente e desembaraçado escritor costuma ser, consegue, em duas ou três penadas, colocar-nos diante dos olhos personagens funcionais e até modestamente memoráveis que, parecendo apoiar-se na caricatura, simultaneamente a escarnecem. É, aqui, o caso do director do pasquim Destapes, o magnífico Rolando Garro, que, tendo um dia “ficado neste mundo sozinho como um fungo”, certo dia “deu de caras com a sua vocação […]: a bisbilhotice jornalística”. De “cabelos lambidos e colados”, dele se diz que “não tinha amigos, mas cúmplices de passagem e, isso sim, inimigos de vária índole, o que o fazia viver em permanente sobressalto, mas não deixava de lhe fazer bem à vaidade”. É até pena que esta personagem, por razões absolutamente prementes e necessárias ao bom andamento da narração, digamos assim, nela não permaneça até ao fim. Sosseguem, porém, os leitores, pois logo haverá de suceder-lhe, no heróico papel de jornalista “de princípios” (subespécie que floresce no Peru como em toda a parte), a vingadora Retaquita, que era “capaz de matar a mãe por uma cacha, sobretudo se fosse suja e escabrosa.” É também, aqui, o caso do velho, melancólico e sentimental Juan Peineta: outrora um famoso “declamador profissional”, sobrevive, desmemoriado e viúvo, num tugúrio miserável, e está-lhe reservado um fim à altura de tamanha decadência. As desventuras desta personagem alcançam uma dimensão tragicómica, como quando, torturado pela polícia, afirma: “Não julguem que por me baterem me vão devolver a memória. Isso queria eu.” (p. 255) As personagens menores e de algum modo estigmatizadas (socialmente, economicamente, culturalmente) parecem merecer do narrador um desvelo descritivo mais conforme e atento à sua humanidade do que aquelas representativas (ou tal é suposto) da elite peruana dos tempos de Fujimori, que acabam sendo quase meramente paródicas: o engenheiro fotografado numa orgia e objecto de chantagem, o advogado, seu amigo, e as respectivas e liberais consortes. No antepenúltimo capítulo, aliás muito certeiramente intitulado “Um remoinho”, o autor, inexplicavelmente, resolve entremear vozes, tempos e lugares diversos da narração. O resultado é inutilmente excêntrico à estrutura e ao (bom) ritmo dos restantes 21 capítulos do romance.

Termina a farsa ligeira com final feliz e conformista (já o dissemos, para descanso e melhor proveito dos leitores mais impacientes ou mais impressionáveis): os maus do regime de Fujimori são castigados, a imprensa tablóide salva a honra do jornalismo (a outra, a de “referência”, não está lá, nem cá, para isso), e os dois casais vão passar uns dias a Miami. A ver o que dá. O sexo.

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