Na noite triunfal dos Radiohead, o céu de Barcelona brilhou com os Beach House

Todos os caminhos do Primavera Sound na noite desta sexta-feira foram desembocar no concerto dos Radiohead, mas Beach House, Savages ou Animal Collective também vingaram.

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Começaram de rajada com cinco canções do novo álbum A Shaped Pool Moon, e depois desse embate inicial revisitaram a sua carreira numa vintena de canções DR
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Estava calor, noite bonita, com o céu e também o cenário estrelado. E havia a voz quente e os teclados de Victoria Legrand, a guitarra de Alex Scally DR
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O rock cortante das Savages, sempre à beira da deflagração mais furiosa e a figura performativa da cantora Jenny Beth, vivem do contacto, olhos nos olhos, com o público DR

Íamos só dar uma olhada. A ideia nem era ficar muito tempo. Havia outros concertos à espera. Já vimos inúmeras vezes os Beach House e a última (Novembro, em Lisboa, Armazém F) deixou muito a desejar. Expectativas zero, portanto.  E no entanto fomos ficando. Eram duas e meia da madrugada de sexta-feira em Barcelona no Primavera Sound. Os Radiohead já haviam triunfado. Alex Turner (Last Shadow Puppets) já havia teatralizado em palco. O público já se havia dispersado, deixando espaço para que nos pudéssemos aproximar dos músicos e contornar as hordas que passam o tempo a conversar aos berros em grupo.

Estava calor, noite bonita, o céu estrelado. E havia a voz quente e os teclados de Victoria Legrand, a guitarra de Alex Scally, a bateria certeira e uma segunda guitarra para criar mais ecos e efeitos. O som saía límpido e cheio, o que ainda não tínhamos percepcionado no palco principal. E de repente a sensação de voltar a ouvir aquelas canções tornou-se arrebatadora. A experiência subjectiva num evento deste género depende de inúmeros factores. Ao contrário de um concerto em sala onde existe outra focagem, ali os estímulos provêm de todos os sítios. Até que algumas canções, por exemplo 10 mile stereo ou Myth, nos levam à certa na direcção das emoções.

E ali ficamos. Durante uma hora o concerto dos Beach House foi o paraíso na terra. Cenário, som, público e canções sonhadoras, com o desenho melódico, os ambientes romantizados e as guitarras a saírem sem mácula. A maior parte começa com um som de guitarra, a bateria ainda em câmara lenta, o som roufenho dos teclados, e depois tudo se vai dilatando com a voz elevada transportando-nos sem itinerário preciso, mas num convite à transcendência. Ao longo de cinco álbuns não mudaram muito a  música, mas as cantilenas continuam a habitar uma bolha própria na qual somos solicitados a submergir. Daqui a alguns dias, no Primavera Sound do Porto, se confirmará se a perfeição é passível de ser repetida.

Essa sensação deverá ter sido percepcionada por muitos milhares que conseguiram posicionar-se num local que lhes permitiu usufruir da experiência plena dos Radiohead. Mas muitos outros terão sentido que as suas expectativas foram goradas. Não por culpa do quinteto inglês. Mas pelas contingências de um festival deste género onde uma multidão compacta se concentra no mesmo local, fazendo ruído, com um som deficiente principalmente na primeira meia hora e onde cada um tem o seu alinhamento ideal, as canções que gostaria de ouvir. Inevitavelmente haverá decepções pelo caminho.

O grupo, esse, deu um bom concerto, exigente, sem concessões e em crescendo. O cenário é magnífico, com um jogo de luzes atraente e com planos fragmentados dos músicos criando um belo efeito estético – embora a multidão que fica mais atrás preferisse ver os músicos nos ecrãs de forma mais clássica. Começaram de rajada com cinco canções do novo álbum, A Shaped Pool Moon (Burn the witch, Daydreaming, Decks dark, Desert Island disk e Full stop), em momentos que criam ambientes tão pausados como abruptos, com a guitarra e o baixo a construírem arquitecturas complexas, enquanto Thom Yorke domina o palco.

Depois de superado esse embate inicial revisitaram a carreira numa vintena de canções, com rendição incondicional do público em National anthem, No surprises, Paranoid android, The numbers ou Karma police. Mas não foi fácil. Thom Yorke parece a maior parte das vezes metido consigo próprio, comunicando e agradecendo apenas q.b., e às tantas o grupo teve que se esforçar para conquistar a assistência. O que é bom de ver numa banda desta dimensão, que não receia contrabalançar a veia mais abstracta e electrónica com destreza (Everything in its righ place ou Idioteque), com a criação de momentos de quase introspecção (Nude) ou climas mais clássicos e emocionais em canções como Street spirit (fade out) ou no crescendo das guitarras e voz em There, there.  

E no final, ao segundo encore, o triunfo, o momento de todas as redenções com Creep, a sua canção mais universal e com a qual nem sempre conviveram bem ao longo dos anos. No caso de um grupo com uma carreira invulgar de mais de vinte anos, mesmo quando parte do público poderá sentir que as suas expectativas não foram cumpridas, há sempre uma canção para deixar um travo final de que valeu a pena. É a canção que une todas as gargantas. Veremos como vai ser, em Julho, no Nos Alive em Lisboa.

Quem também teve que suar a sério para tirar o público de uma letargia inicial foram as Savages. Com o segundo álbum, Adore Life (2016), subiram de patamar, deixando os palcos mais intimistas. Agora confrontam-se com grandes plateias. Há custos envolvidos. O seu rock cortante sempre à beira da deflagração mais furiosa e a figura performativa da cantora Jenny Beth vivem desse contacto, olhos nos olhos, com o público. Foi quando tocavam Husbands que ela percebeu que tinha de fazer qualquer coisa. Virou-se para o público e disse que estavam longe. Tratou de estreitar a relação. Foi para o meio dele, transportada em braços. E a partir daí tudo foi diferente. As Savages em palco são caso sério. Dão tudo e quando a coisa corre bem também recebem de volta. Foi isso que aconteceu também no Primavera Sound do Porto de 2013 num concerto que elas rotulam como tendo sido essencial no seu percurso. No próximo fim-de-semana há reencontro afectivo marcado.

Quem também vai estar no Porto são os Animal Collective que provocaram celebração em Barcelona, com os seus actuais três membros entregues a teclados, electrónicas e programações, coadjuvados por um baterista. É uma folia psicadélica o que têm para propor, em parte assente no último álbum, Painting With (2016), com cenário colorido, uma forma de cantar ritualista a duas vozes (Panda Bear e Avey Tare) e uma dinâmica sonoridade pop polirrítmica, com tanto de dançante como de experimentalista. O público agradeceu a festa.

No campo da dança apenas competiram com os australianos The Avalanches, que maravilharam o mundo em 2000 com  Since I Left You, uma obra de artesãos tecnológicos criada a partir de 3000 mil samples. Quinze anos depois acabam de anunciar o sucessor desse álbum (com colaborações de John Father Misty ou MF Doom) pelo que havia  curiosidade em vê-los, apesar de terem começado às três da manhã. O anfiteatro Ray-Ban encheu-se para ouvir a sua electrónica entrecortada por elementos sonoros e fragmentos vocais reconhecíveis, ficando a sensação que voltaram ao local onde tinham ficado.

Mas nem tudo foi bom. É impossível. Por exemplo, os The Last Shadow Puppets, de Alex Turner (Arctic Monkeys) e Miles Kane, não despertaram entusiasmo. O grupo foi acompanhado por uma secção de cordas, mas nem mesmo quando propuseram uma versão de Is this what you wanted de Leonard Cohen, conseguiram animar a multidão, acabando presos aos trejeitos teatrais de Turner, quase sempre à beira da irrisão. A sonoridade sumptuosa das canções, algures entre a soul, a pop e o rock nostálgico, não passou.

Nada de mais num festival onde é quase impossível não se ficar saciado tal a variedade de um cardápio (Beirut, Tortoise, Nao, Holly Herndon, Cabaret Voltaire, Robert Forster ou Dinosaur Jr foram apenas alguns dos outros protagonistas do dia) que começa a ser desenrolado pela tarde. Foi a essa hora que demos com o pianista ucraniano Lubomyr Melnyk, de 67 anos, que com a sua técnica assombrosa deixou extasiada a assistência, que o ouviu respeitosamente em quase silêncio. Há muitas músicas e cenários no Primavera Sound de Barcelona.

 

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