Um mundo melhor com a ZDB ou o Rock In Rio?

A realização regular de festivais de música em Portugal, nos moldes profissionalizados do presente, não é realidade recente.

É verdade que ainda existem autarquias que os confundem com arraiais, elites culturais que os olham com paternalismo sem os compreenderem, televisões que apenas nos devolvem o folclore, ou instituições que continuam sem entender o seu impacto cultural, social ou económico, mas um longo caminho já foi feito.

Um dos momentos importantes dessa maior profissionalização coincidiu com a entrada em 2004 do Rock In Rio em Portugal. Entrevistei Roberto Medina nessa altura e vislumbrei um empresário e homem do marketing inteligente, capaz de potenciar a sua marca e dos patrocinadores, dizendo que o entretenimento e o turismo eram as maiores indústrias do mundo, afiançando que a vocação de Portugal era os grandes eventos.

Em simultâneo chamava a atenção para a vertente solidária do evento, mistura de competitividade e agressividade comercial em nome de um mundo melhor. O capitalismo extremo de mãos dadas com o assistencialismo, num tipo de filantropia que não é novo. É essa ideia que mais vale ajudar os mais carenciados com pouco que seja, o que paradoxalmente é a forma de perpetuar a situação sem nunca a resolver. Eis a contradição de todos estes programas: legitimam-se para quebrar o ciclo vicioso da carência perpetuando esse mesmo ciclo vicioso. O público, por sua vez, compra um bilhete para um evento, misto de centro comercial, parque de atracções e concertos, redimindo-se de eventuais sentimentos de culpa consumista, porque, afinal, o que pagou contribui supostamente para um mundo melhor.

Em termos de programação a ideia é dar ao público o que ele quer recorrendo-se a sondagens, pesquisas e análises de sucesso – o que é um paradoxo, porque, se programar é argumentar, dialogar, persuadir, criar laços de confiança com o público, neste caso é assumir o fracasso dessa mesma acção.

Falo do Rock In Rio porque o seu modelo foi reproduzido por outros grandes festivais em Portugal, algo que se vislumbra na produção, na relação com os patrocinadores ou na comunicação – o Rock In Rio adoptou deste o início a máxima de “maior do mundo” – e isso percebe-se ao nível do discurso adoptado, com a quantidade e os números a tornarem-se na nova obsessão.

Hoje não existe nenhum grande festival sem patrocinadores, pagando os custos do mesmo e tendo em retorno visibilidade. Em Portugal diz-se hoje que os cartazes estão ao nível dos mais influentes do mundo e que os bilhetes são mais baratos. É discutível. É verdade que alguns dos nomes mais atraentes virão aqui, mas globalmente, para lá de alguns cabeças de cartaz, os festivais portugueses não são os melhores ou maiores – o que não tem nada de mal –, nem sequer os mais baratos, se nos detivermos na comparação do custo de vida de cada país.

E, mesmo que assim fosse, é necessário dizer que existe um preço a pagar pela excessiva pressão mercantil nos recintos a transformar por completo a experiência. Não se trata de demonizar a relação com as marcas, mas sim de ter consciência das diferentes variáveis em jogo e pensar nas formas de organizadores, patrocinadores, artistas e público verem correspondidas as suas expectativas de forma equilibrada.

Honra lhe seja feita, o Primavera Sound do Porto tem tentado fazer essa reflexão. Aí é como se estivéssemos perante um capitalismo de rosto humano. No fim de contas o objectivo é o mesmo – gerar receitas –, mas aposta-se numa lógica de responsabilidade social e ambiental, criando nessa dinâmica uma relação mais fidelizada e discreta com o consumidor e, quem sabe, mais eficiente para as marcas.

Independentemente dos modelos, nunca existiram tantos festivais. Vivemos na era do evento e do acontecimento – o que cria perversões. Uma espécie de vazio em redor. Durante os meses de Verão é como se nada mais existisse. Para além disso, a programação de concertos de média dimensão tem vindo a ressentir-se nos restantes meses do ano.

Quando o Rock In Rio chegou a Portugal, a crise económica ainda não havia irrompido. Nos últimos anos vive-se um contexto de mudança com discussões à volta dos modelos de desenvolvimento. E este tipo de acontecimentos não habita numa redoma. Devem ser por isso enquadrados nesse contexto.

Pegando no repto do Rock In Rio, o que significa, afinal, construir um mundo melhor? Há 12 anos os números do festival impressionavam e havia essa narrativa de uma Lisboa fomentadora de grandes eventos – uma experiência testada em Barcelona e criticada hoje devido à superlotação turística. Agora a quantidade ainda enfeitiça, mas apenas se estiver vinculada à qualidade, à sustentabilidade e à redistribuição equitativa. E sobretudo com o lastro e os alicerces erigidos, porque o efeito de um festival não deve esgotar-se nos dias em que acontece.

Nesse particular, uma pequena estrutura como a Galeria ZDB – aqui referenciada em termos simbólicos, porque outras poderiam sê-lo – acaba por impulsionar a transformação local, reflectindo ao mesmo tempo realidades globais, tanto ou mais do que o Rock In Rio. Claro que podem coexistir. E a prova é que o palco secundário do Rock In Rio deste ano é constituído por muitos grupos que passaram pela ZDB. Porém, quando os holofotes estão ligados no Parque da Bela Vista, essa acção é esquecida.

E, na verdade, a actuação da ZDB mede-se todos os dias no tecido cultural, na formação de novos públicos, no surgimento de novas sensibilidades, naquilo que fica da sua filosofia, da criatividade que potencia, da economia distributiva que gera, das boas práticas que pode obrar, recebendo, envolvendo, criando comunidade, olhos nos olhos. Isso não se paga. E é isso que cria identidade, bairro, cidade, um mundo melhor. Era bom não o esquecer, agora que vamos ficar embaciados pelos festivais.

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