Experiência da imensidão

Colectânea de textos em que Olivier Rolin nos coloca diante do colossal, e “não perante a delicadeza”, da vastidão da paisagem siberiana.

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A propósito do que vai descrevendo, paisagens físicas ou psicológicas, vai-se tornando evidente a imensa cultura de Rolin sobre a Rússia FOTO: Dario Cruz

Sibéria reúne sete textos do francês Olivier Rolin (n. 1947), sobre a região da taiga russa, escritos em diferentes ocasiões. Três dos quais estiveram previstos para publicação em 2001 no jornal Le Monde, mas devido aos acontecimentos do 11 de Setembro as páginas que estavam reservadas para essas longas crónicas foram ocupadas com temas, então, mais actuais; mantiveram-se inéditos durante vários anos. Outros três, que compõem a parte Irkutsk – Vladivostoque, foram escritos depois de uma viagem no comboio Transiberiano (três carruagens com escritores), em Junho de 2010, organizada pelo “Ano França-Rússia”. O volume inclui ainda um outro texto, Desembarcadouro do Inferno, inspirado pela leitura de Os Contos de Kolimá, de Varlam Chamalov, escrito depois de Rolin ter visitado Magadan, nos confins da Sibéria, o lugar onde se situaram os campos do gulag, “por onde passaram as incontáveis vítimas do Kolimá, um dos grandes matadouros do século XX”.

Olivier Rolin é fascinado por viagens, isto é bem visível em quase todos os seus livros, desde Porto-Sudão (ASA, 1995) a Baku – Últimos Dias (Sextante, 2011), passando pelo inclassificável Suíte no Hotel Crystal (ASA, 2006), em que descreve várias dezenas de quartos de hotel onde pernoitou um pouco por todo o mundo. Mas é no seu mais recente romance O Meteorologista (Sextante, 2015), sobre a vida de um cientista soviético condenado a um campo de concentração, que se nota o seu enorme fascínio pela Rússia, pelas “paisagens devoradas pelo vazio”, pela “plana vastidão da terra” que parece exaltar os céus russos. São estas paisagens, em que o autor nos coloca diante do colossal, e “não perante a delicadeza”, que fazem o pano de fundo das histórias dos textos deste volume, Sibéria. Mesmo quando Rolin evoca as memórias da beleza de Olga, “a jovem de Irkutsk” por quem há vários anos se apaixonou “ligeiramente” quando deu aulas na cidade, é a experiência da imensidão (branca, nua, gelada, mas cheia de histórias) que passa para o leitor.

Ao longo dos textos, e a propósito do que vai descrevendo, quer sejam paisagens físicas ou psicológicas, vai-se tornando evidente a imensa cultura de Rolin sobre a Rússia, sobretudo histórica e literária, pois são muitas as referências a vários autores, e não apenas aos esperados mestres clássicos; Vassili Grossman, e o seu monumental Vida e Destino, é um daqueles a quem recorre com alguma frequência, mas também a Soljenitsyne e a Chalamov, dois autores que conheceram e escreveram a experiência dos campos de concentração soviéticos. “Sibéria foi nome de Dor”, diz Rolin. É, aliás, evocando Chalamov (catorze anos de deportação), vítima do Grande Terror estalinista, que Rolin se interroga sobre a memória, ou melhor, sobre a “doença do esquecimento”, em Magadan – que é hoje o “coração de ouro da Rússia”, um lugar de prosperidade e de lucro rápido e onde já quase ninguém se lembra (ou quer lembrar) dos campos de concentração. “Toda a gente, ou quase toda a gente – e ainda bem que assim é – conhece o nome de Auschwitz. Mas quem associa o nome de Kolimá a uma gigantesca máquina de aviltar e matar? Que escolas o ensinam? (…) Não se trata de ‘comparar’ campos nazis e soviéticos, o próprio termo ‘comparação’ é deplorável, pelas imagens de fria avaliação que acarreta. A morte em massa não é uma mercadoria, uma coisa susceptível de ser pesada.”

Algumas das viagens foram feitas a bordo do comboio Transiberiano, que percorre a maior linha férrea do mundo, dez mil quilómetros através do “alto-mar em terra”, que é a verdadeira imagem da imensidão gelada. Olivier Rolin atravessa carruagens, caminha pelos corredores por entre “cabeças rapadas, ventres proeminentes, bíceps, tatuagens”, por entre gente que lê textos sagrados, afasta braços e pés de gente adormecida, visita a última carruagem transformada em discoteca, “fábrica de embriagados” e sala de fumo. Quando o comboio pára, ou quando interrompe a viagem, vai-nos relatando acontecimentos mundanos, apontamentos de História e de histórias, descrevendo lugares visitados, convocando memórias, tudo envolto numa estranha melancolia. É assim que ficamos a conhecer os lugares remotos de casas feitas com tábuas escuras, circundadas por paliçadas, com telhados de chapa branca por baixo de emaranhados de fios eléctricos meio pendurados, as estradas onde os velhos Lada avançam aos solavancos; e que a atracção dos russos pelas paliçadas em redor das casas e quintais é uma maneira “de se protegerem do espaço imenso, da angústia que nasce do ilimitado” que é a Sibéria – terra sobre a qual Tchékhov diz que está fora da “medida humana”, e que só as aves migratórias sabem onde termina. E é nesses confins da Sibéria, em Vladivostoque, que Olivier Rolin se recorda de Lisboa e de Pessoa, escreve: “Na vasta praça em frente do karavielnaia naberejnaia, o cais dos navios cujo nome me recorda subitamente, do outro lado do mundo, a Ribeira das Naus de Lisboa e de Álvaro de Campos, um gigantesco soldado de bronze do Exército Vermelho relembra a conquista da cidade, a última do império russo a cair nas mãos dos bolcheviques, em 1922.”

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