(O) cuidado com as crianças

Resultando provado para o Tribunal a prática de abusos sexuais de uma criança, muitas vezes o condenado recebe a sentença e apanha um táxi para casa.

São cada vez mais as notícias de abusos sexuais de menores e da instauração de processos que os investigam. Atenta a natureza destes crimes e a vulnerabilidade das vítimas, tenho por princípio pessoal não representar os seus suspeitos. No caso dos menores, tenho o princípio inverso.

No âmbito de alguns patrocínios que assumi, testemunhei a imensa coragem demonstrada pelas crianças ao relatarem perante as autoridades judiciárias os abusos de que foram vítimas, não obstante o natural embaraço e o receio por represálias futuras. Contudo, a voz do menor pode não constituir, nestes casos, o único meio forte de prova para demonstração dos factos que serão submetidos à apreciação do Tribunal. Para esclarecimento do julgador, muito contribui o papel dos médicos, psicólogos e todos os peritos nomeados no processo que no âmbito da investigação são chamados a ouvir e a avaliar a criança e se pronunciam, à luz da sua experiência clínica, sobre o seu relato dos factos, a genuinidade e espontaneidade do seu discurso, a sua motivação, o sofrimento manifestado e os danos causados pelo suspeito do crime.

Lembro que em processos de abusos sexuais de menores, a lei impõe que o juiz de instrução oiça a criança na fase de inquérito, valendo essas declarações (gravadas) mais tarde no julgamento sem que seja necessário o menor comparecer na audiência. Tratando-se de uma excepção ao princípio da imediação, significa isso que, ao contrário do que acontece na generalidade dos processos e a menos que o Tribunal venha a considerar absolutamente necessário, a vítima não tem de comparecer mais tarde no julgamento para prestar novamente declarações (o que bem se compreende) ficando assim assegurado que as crianças sejam poupadas ao vexame de terem de repetir a sua história e reviver a sua dor nas várias fases do processo.

De facto, por razões evidentes, na maioria dos processos desta natureza – em que estão geralmente em causa factos ocorridos entre quatro paredes – acabamos por ter quase sempre em jogo a palavra do arguido, que está na audiência perante os Juízes que o vão julgar (e tendencialmente nega os factos imputados) contra as declarações do menor, gravadas, que não está presente na audiência. O papel daqueles profissionais é por isso fundamental para conduzir o Tribunal no caminho da descoberta da verdade e na tomada de uma decisão justa.

Mas a contribuição destas pessoas, trazida ao processo pela (boa) investigação, não pode ser alcançada perdendo de vista o equilíbrio do menor e a sua necessidade de recuperação emocional e psicológica! Infelizmente, não raras são as vezes em que, na fase de inquérito, o menor fala sobre os factos num determinado dia na Policia Judiciária; volvidos quatro meses é chamado a prestar declarações para memória futura perante o Juiz de Instrução; seis meses mais tarde recebe uma notificação do IML para efeitos de realização de relatório de avaliação psicológica e dois meses depois recebe nova carta do mesmo instituto para a realização de exame físico pericial. Ou seja, durante o inquérito, o menor é “convidado” a falar e a reviver os factos de que foi vítima em momentos temporais alargadíssimos e em tantas ocasiões quantas a investigação entender, sem que haja qualquer cuidado no tempo ou coordenação das diligências e tudo muito dependente das agendas de quem tem a tarefa de o ouvir.

Em consequência, aquilo que o legislador pretendeu acautelar com as declarações para memória futura do menor vítima de abusos sexuais, cai em saco roto quando a criança, depois de falar dos factos diante do juiz de instrução num dado momento, é chamada a repeti-los e a revivê-los muito mais tarde para a realização das diligências acima referidas, com intervalos de tempo absolutamente inaceitáveis.   

Já quanto às penas aplicadas pelos nossos Tribunais nestes processos, são muitas as notícias (de entre aquelas que aqui comecei por falar) que nos dão conta de pessoas condenadas a penas de prisão suspensas na sua execução, isto é, decisões que não as colocam efetivamente na prisão. Ora, resultando provado para o Tribunal que tais abusos ocorreram, não se compreende a brandura dessas decisões atento o bem jurídico que a lei quis proteger com a incriminação, o inerente alarme social e, sabemos também, o enorme perigo de reincidência. No fundo, provando-se, por exemplo, um crime de corrupção, o condenado é muitas vezes preso porque atentou contra a economia em geral. Mas resultando provado para o Tribunal a prática de abusos sexuais de uma criança, muitas vezes o condenado recebe a sentença e apanha um táxi para casa.

Advogado da Área de Direito Penal da PLMJ – Sociedade de Advogados, RL

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