O leitor tem de fazer o seu trabalho

O galês Cynan Jones escreveu uma fábula moral. O romance A Cova é um mapa cartográfico da anatomia da dor de uma perda, mas também os necessários mecanismos de sobrevivência.

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Cynan Jones começou por publicar histórias em revistas, entre as quais a Granta. O cenário de todas elas eram as cidades, em especial Glasgow, Escócia. Mas foi a partir do primeiro romance — A Cova é o seu terceiro —que o ambiente se alterou, a dureza do mundo rural e as suas pessoas ganharam espaço Alice Fiorilli

Em A Cova, o escritor galês Cynan Jones (n. 1975) disseca com precisão cirúrgica os mecanismos de sobrevivência que decorrem de uma perda dolorosa. Numa linguagem sóbria (que por vezes parece querer fazer lembrar versículos bíblicos), pouco adjectivada, em parágrafos breves, o leitor assiste aos movimentos que levam ao isolamento de um dos dois protagonista, ao ser desenhado uma espécie de mapa cartográfico que apenas serve para deixar à vista a anatomia da sua dor.

A história – narrada em capítulos curtos que quase sempre alternam entre as duas personagens – decorre como um duelo: de um lado está Daniel, que enviuvou recentemente e que tenta preservar a vida, do outro está o “homem grande” (é sempre assim nomeado), caçador furtivo, fornecedor de texugos à máfia das lutas ilegais entre animais, o símbolo do desprezo pela natureza. O cenário é o do campo da costa oeste do País de Gales, na região de Ceredigion, um mundo rural de chuva e de frio, com o mar por perto e as tempestades que invadem as terras, longe do ideal bucólico que os habitantes das cidades cultivam, mas antes caracterizado pela crueldade e pela dureza. Daniel, o principal protagonista, trabalha na quinta repetindo tarefas ancestrais, como ajudar os cordeiros a nascer ou avaliando da proximidade das raposas pela força do seu regougar. Poderia ser um homem de qualquer idade num qualquer tempo. A sua mulher morreu há poucas semanas devido ao coice de um cavalo, que lhe desfez o crânio. Ele tenta sobreviver à dor daquela perda cumprindo tarefas que a tradição sanciona. “Por vezes, retiravam a pele a um cordeiro morto e atavam-na a um órfão, como um casaco, na esperança de que a mãe que perdera o seu próprio cordeiro o aceitasse e criasse como se fosse seu.” (pág. 23)

Até então, a personagem Daniel procurou construir para si e para a mulher um lugar seguro, e agora, com a morte dela, tudo se desmoronou. Os acontecimentos no romance, as várias histórias, surgem assim como partes de uma alegoria que vai sendo descrita e que tentam ilustrar a ideia de lugar protector. “Em A Cova quis escrever sobre como tratamos de criar um lugar seguro para nós e para as coisas de que gostamos, e como uma qualquer força, que não controlamos, o pode impedir”, disse Cynan Jones ao Ípsilon. “A cova [onde vivem os texugos] é a alegoria perfeita. Se conto uma história sobre um homem que enfrenta sozinho a época do nascimento dos cordeiros, e sobre outro que ataca animais com cães, e que os caça para jogos perversos, há que aceitar a crueldade dessa história. A dureza da paisagem nessa época do ano, e os acontecimentos brutais que têm lugar no livro são simplesmente uma manifestação de como são as coisas. No campo tudo tem de ser feito por nós: se queremos lenha, temos de a ir cortar, se queremos leite, temos de ordenhar a vaca ou a ovelha.” E continua dizendo que o mundo que nos rodeia nos oferece constantemente alegorias e que ele as quer usar para ilustrar os dilemas humanos. Mas admite que, literariamente, “as alegorias funcionam melhor num ambiente rural, primevo e telúrico”, em que tudo parece estar mais próximo da sua essência.

Cynan Jones começou por publicar histórias em revistas, entre as quais a Granta. O cenário de todas elas eram as cidades, em especial Glasgow, na Escócia, onde trabalhou durante algum tempo. Mas foi quando escreveu o primeiro romance, The Long DryA Cova é o seu terceiro – que o ambiente se alterou, a dureza do mundo rural e as suas pessoas ganharam espaço. “Quando comecei a escrever fi-lo sobre personagens que tinham a cidade como cenário. Pensava que não havia nada interessante no lugar em que nasci”, confessa. “Depois apercebi-me de que as histórias humanas, os dilemas e os conflitos, são parecidos na cidade e no campo. Alguns escritores usam o lugar como resultado das suas histórias, mas A Cova é o resultado de um lugar, daquele lugar específico. Eu cresci ali, trabalho e vivo ali. Foi para mim um momento incrível reconhecer que conseguia escrever histórias sobre o lugar onde nasci.”

Mundo rural
Não há em A Cova nenhuma idealização do mundo rural, tudo soa a real. A crueza com que são descritas algumas tarefas de manejo animal, digamos assim, como a de enfiar o braço dentro do útero prenhe de uma ovelha e tentar encontrar uma pata de um cordeiro, ou uma qualquer malformação, é descrita de maneira vívida. A gigantesca devastação que existia no coração do viúvo Daniel, é ilustrada nas suas tarefas de rotina. A dureza e aparente crueldade de algumas descrições surgem de modo natural no livro, não são exploradas como folclore ou como curiosidades etnográficas. Existe diferença entre “voyeurismo” e testemunho. “Sob pressão todos somos capazes de coisas extremas”, explica Cynan Jones. “Mas o cuidar também é um instinto animal, a vontade que temos de proteger outro. Isso existe ao lado da capacidade de ser cruel. Daniel só consegue encontrar a sua própria segurança no processo de nascimento dos cordeiros, nos cuidados da quinta, em algo maior do que ele.”

Ao lidar com a sua mistura de nostalgia, tenacidade e raiva, Daniel sente-se parte da quinta, não questiona as suas tarefas, cumpre-as porque sabe que só através delas poderá ter salvação. “No campo existe uma sensação de pertença ao lugar, parece-me que isso não existe nas cidades”, diz Jones. “A escala dos problemas acaba também por mudar no campo, torna-se tudo mais absoluto. Na cidade os problemas são humanos, enquanto que no meio rural esses problemas são a uma escala muito maior e não dependem de nós. Estão para além de nós, não temos controle sobre eles. Como a história de Daniel, que tem de enfrentar sozinho os problemas da quinta. É uma solidão total e absoluta, não há nada e nada pode fazer, nem tão-pouco ter relações sociais comuns para além das que são necessárias ao trabalho. A solidão é violentíssima e não há saída.”

O estilo de Cynan Jones, neste romance, tem mudanças subtis de acordo com o que é narrado, vai-se adequando à história. Assim, e nos capítulos dedicados ao “homem grande”, ao caçador furtivo, que está envolvido por um mundo de armas, de cães de fila e de maus tratos a animais, o estilo transforma-se por vezes em algo mais físico, mais duro e visual. O tipo de frase, incisiva e despojada, diz o autor que se deve à clareza do que quer contar: “Quanto mais claro tenho o conceito que quero, mais curtas são as frases que escrevo.” Para além das já notadas ressonâncias bíblicas – Jones concorda e atribui-as às suas leituras juvenis do Antigo Testamento – há também algumas referências ao imaginário gaélico e às lendas arturianas. Não passará despercebida esta passagem em que a espada do Rei Artur vem à memória do leitor, e sobretudo porque ao facto narrado é atribuído, mais adiante na história, uma ligação com o nascimento de um cordeiro com duas cabeças: “Sentia-se decepcionado e traído pelo facto de o estilhaço ter saído do chão. Durante a sua infância, criara uma mitologia em seu redor, um relâmpago que ali se solidificara, uma grande espada que ao longo dos anos também ele tentara mover.” (pág. 43)

A Cova, que é quase uma fábula moral – não fosse o inesperado final – é um romance que obedece a uma estrutura rígida, delineada para ter efeito sobre o leitor (bastam as três páginas iniciais). “Foi um livro difícil de escrever em termos de estrutura e balanço”, confessa Cynan Jones. “E também por ter de lidar, de enfrentar, alguns acontecimentos mais físicos da história. Mas escrevi sobre um lugar que conheço intimamente e sobre as pessoas que estão à minha volta todos os dias, nesse sentido não foi difícil. Depois só tive de seguir as personagens, que a uma primeira leitura poderão parecer muito ‘branco ou preto’, mas na verdade há nelas muito de cinzento.” Contou o autor que durante anos sofreu pressões para escrever um romance longo, e que a isso acabou por meter as mãos durante mais de dois anos. Mas acabou por chegar a um ponto da escrita em que uma das histórias que fazia parte desse projecto de romance longo, começou a ganhar força e a sobressair. Cynan Jones contou que, então e de uma assentada, deitou para o lixo dois terços do que tinha escrito durante todo esse tempo. “Acredito que a história faz a escolha do seu próprio tamanho, curta ou longa. A história de A Cova escolheu ser curta. Eu tive de ser corajoso para a ouvir.”

Para Jones a escrita tem de provocar trabalho no leitor, que se tem de tornar, no seu trabalho de leitura, uma espécie de cúmplice do escritor. O leitor deve ser capaz de preencher os ‘buracos’ deixados em aberto pelo autor. “Se isso falha, toda a escrita falha. O escritor não soube estabelecer a conexão. É importante que se confie que o leitor faça o seu trabalho.”

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