Imaculada concepção

Esta assassina passa mais tempo a observar do que a assassinar. E há muito tempo que não víamos tão imaculada concepção plástica: o ecrã a explodir em cores, os vermelhos a dialogar com os dourados, e logo a seguir ligá-los aos verdes da natureza.

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Sete anos sem longas-metragens de Hou Hsiao-Hsien – desde A Viagem do Balão Vermelho, de 2008, em si mesmo um filme cheio de peculiaridades – conferem a A Assassina uma aura de “regresso”, e como regresso o filme foi saudado no Festival de Cannes 2015, onde este foi um dos filmes de maior destaque e de onde Hou saiu com o prémio de melhor realizador. Mas se é o “regresso de um cineasta”, de um grande cineasta, poucas coisas nele, se algumas, se podem qualificar enquanto “regresso”: tal como no filme de 2008, que foi rodado em Paris, Hou continua em viagem, sendo de notar que desde o seu primeiro filme rodado fora de Taiwan (As Flores de Xangai, em 1998) se vêm acumulando os filmes de Hou feitos em territórios estrangeiros. Viagem que neste caso o leva à China continental, à indústria da República Popular, cada vez mais um polo aglutinador das cinematografias chinesas e em cada vez mais frequentes colaborações com cineastas de Taiwan (como Hou) e de Hong Kong. Viagem, ainda, porque A Assassina mergulha em géneros (o wuxia) e épocas históricas (o século IX) estranhos ao essencial da obra de Hou, que nunca trabalhou a partir de uma lógica de género e se tem vários filmes históricos eles tendem a concentrar-se no século XX, sobretudo retratando as primeiras décadas de Taiwan depois do fim da Guerra Civil chinesa.

Portanto, tudo é novo, tudo é território desconhecido, para Hou e para o espectador. Nem a “história de Taiwan” nem um daqueles melodramas contemporâneos, familiares (como Um Tempo para Viver, um Tempo para Morrer de 1985) ou intimistas (como o segmento “actual” de Três Tempos, de 2005, o último momento em que Hou filmou um “aqui e agora” de Taiwan). Em vez disso, a antiguidade chinesa, entre a história e a mitologia, e as suas representações artísticas – Hou referiu que uma das suas principais inspirações em A Assassina tinha sido a pintura clássica chinesa, e a este aspecto já voltaremos. E portanto, nem a sombra de Ozu nem a de Antonioni, influências (sobretudo o japonês) visíveis em diversos momentos da obra de Hou – se quisermos fazer o jogo das associações cinéfilas diríamos que A Assassina lembra mais o Yokihi com que Mizoguchi, na fase final da carreira, filmou a antiguidade chinesa a partir de uma heroína feminina, com a dimensão sacrificial da personagem a coexistir com a observação dos rituais do poder e um sentido estético de uma precisão milimétrica.

É o aspecto que mais imediatamente salta os olhos: a imaculada concepção plástica de A Assassina, a maneira como faz o ecrã explodir em cores, pôr os vermelhos a dialogar com os dourados, e logo a seguir ligá-los aos verdes da natureza. Mas há muito tempo que não víamos cores assim, tão fortes e definidas sem que isso seja ostensivo, com uma lógica de tableau vivant, de quadro vivo, perfeitamente dominada e administrada, até no que convoca em termos de uma “fixidez” – importante enquanto sugestão da dinâmica das estruturas do poder na China da época, e importante enquanto matéria, assumidamente “museológica” se quisermos, que se oferece ao olhar da protagonista, essa “assassina” que passa mais tempo a observar do que a “assassinar” (é, de resto, toda a questão narrativa do filme: Nie Yinniang é uma assassina exímia que tem apenas o terrível defeito de se comover com as suas supostas vítimas, a ponto de se tornar incapaz de executar o trabalho). A aproximação de Hou à História, nesse sentido, tem o que seu quê de rosselliniano tal como o mostra um filme como a Tomada do Poder por Luis XIV, especialmente: ela é ao mesmo tempo muito neutra, e muito descritiva (a quantidade de pequenos rituais, como a preparação de um banho, por exemplo, com que Hou preenche cenas inteiras), e construída a partir de uma objectividade que tomas as tradições representativas (a pintura, como disse Hou) como fonte de reconstituição mais credível. Por outro lado, a relação com um olhar preciso – o da protagonista – vai introduzindo cambiantes nesta espécie de neutralidade: é reparar na quantidade de véus e cortinas que a partir de certa altura se vão colocando entre a câmara e a matéria filmada, sinalizando a posição furtiva da assassina mas ao mesmo individualizando, e de certa forma idealizando até ao risco da evanescência, o olhar sobre todo aquele rigor de composição.

Composição: já mais do que uma vez dissemos que é um dos valores mais em crise no cinema contemporâneo. Uma das coisas admiráveis de A Assassina é esse reencontro com um cinema que faz da composição plástica um valor central, e não numa perspectiva decorativa mas realmente significativa, puxando as possibilidades (de definição, sobretudo) da imagem digital a um ponto que raramente se tem visto. Mais, parece mesmo um filme feito a pensar primordialmente num ecrã de grandes dimensões (o da sala de cinema), tal a complexidade das composições e a importância dos detalhes e das proporções (aquele plano no início pré-genérico, ainda o filme é a preto e branco, em que as figuras humanas são apenas pequenas “manchas” num enquadramento dominado pelas copas das grandes árvores e por uma imponente estrutura arquitectónica). É algo que também se tem tornado raro.

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Mas aqui chegados, que é do wuxia e das artes marciais? Não é que A Assassina seja um filme em trompe l’oeil e passe o tempo a esconder-se do que anuncia ser – todo o universo está lá, todos os ingredientes estão lá. Mas Hou não faz um filme de género, faz uma interpretação do genéro. Há alguns duelos, impecavelmente coreografados, mas são poucos, e são rápidos. Mas o coração do filme não é a acção, é a relutância em passar à acção, em abdicar dos “sentimentos humanos”, como na introdução diz a mentora da assassina à assassina, apontando-lhe um defeito. O filme atrasa, hesita, adia: é a característica mais singular do seu trabalho sobre o tempo, esse constante adiamento da “acção”, sempre trocada pela “contemplação”. Embora trabalhe o século IX, a preocupação de A Assassina com a compaixão e com a disposição para a compaixão, com a recusa de uma impiedade pragmática trocada pelo seu exacto oposto, não deixa de parecer um comentário a este século XXI em que, da China ao Ocidente, se impõem os valores do individualismo e da lei do mais forte, na economia como na vida social. Há uma nobreza e um abandono na personagem principal que, isso sim, resiste e continua sempre a resistir à mácula. Não é, portanto, com uma elipse que se passa dos últimos planos na corte do alvo da assassina aos planos em que ela cai definitivamente em desgraça junto da mentora: apenas a expressão de algo que não aconteceu, em nome da compaixão. E por isso A Assassina pode terminar a trazer-nos ao espírito, se perdoarem a referência “ocidental”, a dissipação do final de uma peça como A Tempestade de Shakespeare.

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