Vertigens na paisagem

A música movediça dos australianos The Necks continua por classificar.

Foto
Há três décadas que este trio de Sydney cria paisagens sonoras que excedem o jazz, aquilo que se convencionou chamar free improvisation e a sonoridade habitualmente associada à ambient music

E ao 18.º disco os The Necks voltaram acordar a crítica internacional, deixando-a num estado em que a aclamação se confunde com a perplexidade. Há três décadas que este trio de Sydney cria paisagens sonoras que excedem, em simultâneo, o jazz, aquilo que se convencionou chamar free improvisation e a sonoridade habitualmente associada à ambient music. Não se diga que nasceram ex nihilo, pois há influências incontornáveis (Miles Davis, Brian Eno, entre outros nomes), mas a verdade é que compõem diante dos ouvintes algo que permanece inclassificável, esquivo, sempre em movimento. Preste-se a atenção devida a este Vertigo. Construído à volta de um drone, vai agregando as notas fugidias do piano de Chris Abrahams, a percussão delicada e forte de Tony Buck e as cordas, intempestivas mas solenes, do baixo de Lloyd Swanton. Um movimento de rumores e esgares esboça harmonias e ritmos que, todavia, não ficarão muito tempo com quem os escuta: sucedem-se uns aos outros como paisagens numa viagem de comboio. A imaginativa manipulação versátil dos instrumentos, “desnaturalizando” os seus sons ao ponto de os tornar irreconhecíveis, permite esse efeito que não é mecânico ou monótono. Desvelam-se detalhes, surpresas, há uma estranha proporção no interior deVertigo. O ranger aflito das cordas liga-se ao bater inquieto dos címbalos que, por sua vez, deixa o palco às notas espaçadas do teclado.

Vertigo cria ambientes, se não mesmo espirais. Nesse sentido é possível evocar uma relação, ainda que longínqua, com a obra de Alfred Hitchcock. Sabe-se que Chris Abrahams estudou o filme na Universidade de Tecnologia de Sydney e não faltam momentos “cinemáticos”, que poderiam fazer parte de uma banda-sonora. É tudo. De resto, o disco não ilustra, não referencia uma obra pré-existente. O título advirá das experiências dos músicos enquanto ensemble, organismo dominado por dinâmicas, relações alquímicas, interacções em tempo real; pequenas vertigens de um grupo musical no espaço.

Aos 20 minutos, Vertigo descansa, prometendo um caminho mais previsível, mas o trio dispersa-se, não resiste ao êxtase violento que os instrumentos vão despertando. E, aos poucos, as cordas, a percussão e a electricidade, progressivamente introduzida pela guitarra de Swanton, conduzem-nos para a combustão ruidosa e negra do noise-rock que os vizinhos neo-zelandeses The Dead C tão bem sabem cultivar. Não será ainda o epílogo do disco. Inóspita e melancólica, tal paisagem erigida pelos The Necks (não muito distante da que os Godspeed You! Black Emperor nos deixaram nos primeiros discos) virá a desaparecer. E nos instantes finais Vertigo limitar-se-á a exaltar a pura capacidade que os sons têm em desafiar as distinções entre a imaginação e o entendimento.

Sugerir correcção
Comentar