Abstencionistas doaram voto a 3549 espanhóis a viver no estrangeiro

Pedro e Adela fizeram tudo bem, mas não conseguiram votar. Nas legislativas de 2008 votaram 31,88% dos inscritos fora do país, quatro anos depois apenas 4,95%.

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Muitos espanhóis recorreram ao Twitter para pedir a alguém que votasse por si DR

Actualmente, há 1.864.604 eleitores espanhóis emigrados mas ninguém arrisca dizer ao certo quantos conseguirão votar. Uma lei que entrou em vigor antes das últimas legislativas, em 2011, fez com que cada eleitor tenha de manifestar a sua intenção de votar a cada eleição, é o chamado “voto rogado”. O processo não é simples: para as legislativas deste domingo só 8% destes eleitores conseguiram ultrapassar os procedimentos burocráticos – resta saber a quantos destes os boletins chegaram a tempo.

Pedro e Adela, a viver em Lisboa há ano e meio, decidiram antecipar-se aos prazos e foram ao consulado inscrever-se em Outubro para poderem votar. “Disseram-me que tinha de ir um mês antes, mas fomos dois meses. Temos de pedir para votar e foi isso que fizemos. Explicaram-nos que estava tudo bem, que íamos receber uma carta das nossas juntas eleitorais dali a duas semanas”, conta ao PÚBLICO.

As cartas chegaram dentro do prazo e depois disso, o casal mandou um email ao consulado a perguntar se tinha de fazer mais alguma coisa. “Garantiram-nos que não. E que antes de 8 de Dezembro, o prazo final, iriamos receber em casa os boletins para votarmos de 16 a 18. Passado uns dias, os boletins não tinham chegado e voltei a perguntar. Aí disseram-me que afinal tinha de mandar um fax para a Junta Eleitoral de Madrid, que é a minha.”

Como os boletins continuavam sem aparecer no dia 4 de Dezembro e dia 8 é feriado em Espanha e em Portugal, Pedro voltou a contactar o consulado, e voltou a ouvir que tudo correria bem. “Disseram-me que iam chegar até segunda-feira, dia 7, mas que mesmo que não chegassem depois não haveria problema, ia sempre poder votar.” Não foi isso que aconteceu, apesar dos inúmeros contactos que o casal continuou a fazer e das repetidas garantias que tudo se resolveria.

Entretanto, “no consulado diziam que o erro era da Junta Eleitoral, na Junta diziam que o erro era do consulado”, descreve. “Na terça-feira telefonaram do consulado a admitir que o erro era deles, que me deveriam ter dito para enviar o fax logo a seguir a receber a confirmação de que estava inscrito. É muito injusto, depois de um mês e meio a reclamar.”

Pedro e Adela são apenas dois de muitos milhares de espanhóis que fizeram de tudo para poder participar nas legislativas e não conseguiram. As dificuldades são tantas que houve gente a pedir a abstencionistas para irem votar por elas. O colectivo Marea Granate criou um site onde os interessados podiam pedir ajuda e entrar em contacto com quem se disponibilizasse a ir votar por si. Quando as urnas encerraram, 3544 pessoas tinham conseguido ver “o seu voto resgatado”, enquanto 13.379 tinham ficado à espera de “doador”.

Acto de rebeldia

A BBC falou com Marian García, que doou o seu voto a uma espanhola no estrangeiro. “Há algum tempo que votar ou não era um dilema e desta vez estava decidida a ficar longe das urnas”, contou. “Mas votar por alguém que quer fazê-lo e está impedido parece-me um acto de rebeldia contra um sistema pouco democrático.” Quando a conversa aconteceu, Marian já tinha contactado com a eleitora mas ainda não sabia em quem iria votar. “Estou a rezar para não ter de votar contra a minha tendência.”

Para quem vive fora, há dois registos diferentes, o CERA (Censo de Estrangeiros Residentes Ausentes) e o ERTA (Espanhóis Residentes Temporariamente Ausentes), cada um com regras e prazos distintos. É no CERA que estão inscritos os tais 1.864.604 (um número que a crise fez crescer muito nos últimos anos; era de 1.194.350 em 2007); no ERTA, como está sempre a ser actualizado, não é conhecido o número dos que constam nas suas listas.

Apesar de haver cada mais espanhóis a viver fora, o número dos que têm votado não parou de diminuir. Nas eleições para o Parlamento Europeu de 2014 votaram 1,98% dos emigrantes que o poderiam ter feito, nas autonómicas de Maio 2,97%. E se olharmos para as legislativas, enquanto nas de 2008, antes da entrada em vigor da lei actual, foram 31,88% os que participaram, nas últimas, em 2011, só 4,95%.

A lei estipula que o censo em vigor fica fechado no primeiro dia do segundo mês anterior à convocatória das eleições. Neste caso, o censo fechou a 1 de Agosto. Depois de convocada a data, há um período extra mas apenas de uma semana. Este ano isso aconteceu de 2 a 9 de Novembro – com muita gente, principalmente na América Latina, mas não só, a viver longe dos consulados, a tarefa torna-se impossível para muitos. Nos Estados Unidos, por exemplo, há quem viva a 1500 quilómetros do consulado mais próximo.

Filas de cinco horas

Na semana extra, houve filas de três a cinco horas em Londres ou Hamburgo, escreve o El País. É obrigatório pedir pessoalmente nos consulados para entrar no CERA. A seguir, cada eleitor teve de pedir para votar até 21 de Novembro.

Para quem já constasse do CERA, a situação estava mais facilitada: estas pessoas tiveram entre 28 de Outubro e 21 de Novembro para “rogar o voto”, por telefone, fax ou correio, podendo depois enviar o voto por correio até 15 de Dezembro ou ir pessoalmente ao seu consulado entre 16 e 18 de Dezembro. Uma opção que não está prevista em todas as delegações diplomáticas espanholas.

De acordo com os membros da Marea Granate, há ainda dezenas de milhares de votos que se perdem pelo correio.

“O sistema não ajuda. Pelo contrário, põe obstáculos burocráticos que, na prática, impedem o exercício de um direito”, diz o advogado Jacinto Lara, membro da plataforma DosMillionesDeVotos, que a Marea Granate se associou e cujos juristas apresentaram uma queixa ao Provedor de Justiça.

As cartas perdidas

Pedro Núñez García, espanhol a viver em Portugal desde 1997, nunca deixou de votar porque o faz em Badajoz e prefere a estrada à burocracia.

“O problema tem vários lados. A burocracia da lei actual aumentou a dificuldade de conseguir votar de forma absolutamente alucinante, mas os próprios consulados bloqueiam a burocracia”, acusa, numa conversa por telefone.

Os atrasos na chegada dos boletins foram tantos que as urnas estiveram abertas até domingo às 20h, como em Espanha, mas para este espanhol o alargamento do prazo é “uma medida cosmética”. “Os políticos falam muito no sufrágio universal e na democracia, mas na prática ajudam a que muitos fiquem fora deste processo.”

García vê nas dificuldades acrescidas uma explicação simples: “Os novos eleitores no estrangeiro, que saíram por causa da crise, votam nos novos partidos e isso não interessa nem ao Partido Popular nem ao Partido Socialista”, diz. A comprová-lo, aponta os resultados das autonómicas de Março na Andaluzia, onde só votaram 3,8% dos andaluzes no estrangeiro mas quem ganhou foi o Podemos, com 29,9% dos votos.

Pedro, que não conseguiu votar, fala em “milhares de cartas perdidas”. “No nosso caso foi um erro, mas conheço muita gente em que não houve enganos de ninguém e os boletins nunca chegaram. É suspeito”, diz. “Em 37 anos de vida sempre que enviei uma carta a carta chegou, pode ter-se atrasado uns dias, demorado mais, mas nunca deixou de chegar.” 

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